E tem mais...

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Um monte de coisa misturada..

terça-feira, 13 de março de 2018

Eu estou emagrecendo, mas não por ter criado vergonha na cara

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A gordofobia* é um assunto sério e tão naturalizado na nossa linguagem, modo de ver o mundo e nas relações humanas em geral, que eu fico cansada só de pensar em como lutar contra, principalmente porque ela me ataca todos os dias.
*fonte: Geledés.

Depois de passar os últimos três anos engordando de forma crescente, mesmo sem mudar nada de especial na minha alimentação, consigo dizer que hoje estou chegando perto do meu objetivo de emagrecimento. Já foram 5kg só de gordura, o que significa que além de perder peso eu estou criando músculos.  O título desse texto foi a forma que eu encontrei para fazer justiça ao imaginário coletivo de que basta "vergonha na cara", ou "só fechar a boca", para emagrecer. Estou conseguindo resultados por que sou privilegiada. No sentido de poder social mesmo, não aquele da #gratidão.

Como mulher é inevitável não pensar em gordofobia na ligação com o machismo, não que os homens não sofram dela tanto quanto nós mulheres, mas como tudo no sistema patriarcal o efeito é muito mais violento em nós. Todas as vezes em que tive uma crise de choro, raiva ou depressão depois de me olhar no espelho, depois de não caber em uma calça número 46, ou de me pesar na balança, eu ponderava: Onde está a minha vida agora? E invariavelmente a sensação de derrota dava lugar a uma leve serenidade, para algum tempo depois acontecer outra crise de auto-estima, e assim o fluxo seguia em círculos de luta interna. Aqui entra o primeiro privilégio, a capacidade de elaborar essa dor vem da possibilidade de aprofundamento em leituras feministas que tenho feito desde 2013. Gostaria de abraçar as tantas mulheres cujas palavras ressoavam na minha cabeça sempre que precisava, coisas simples como: "você é muito inteligente", ou "você é uma boa pessoa", costumavam ganhar do "estou acima do peso". Então, o tempo para ter estudado o que eu estudei para me fortalecer é um privilégio.

Admiro muito a cultura brasileira por nossa informalidade com nossos abraços e beijos afetuosos, e por isso também temos o costume de elogiar as pessoas, o único problema é a forma como as enxergamos, moldada por um padrão social que é cronicamente gordofóbico. Isso significa que a nossa imagem de sucesso é uma pessoa magra, e de preferência com pele clara. Acontece que o corpo é um organismo dinâmico que vai se transformar no decorrer da vida e por vários motivos, um deles é a saúde mental. Há pessoas que engordam quando estão apaixonadas, ou emagrecem quando estão em depressão. Isso torna delicado o costume de elogiar a pessoa que está emagrecendo, porque ela pode na verdade estar completamente infeliz, e a magreza vem com essa carga - digo isso com conhecimento de causa, porque elogiei uma amiga e na sequência ouvi dela como era triste não ter vontade de comer.  Não quero de forma alguma desencorajar elogios, acho uma atitude muito gentil, mas talvez seja interessante fugirmos da temática do corpo, e focarmos em roupas, acessórios, cortes de cabelo e atitudes, por exemplo.

Sou uma grande disseminadora e entusiasta de análise/terapia, e costumo repetir para todos os meus amigos a necessidade que temos de ter esse tipo de acompanhamento. De novo aqui um dos mais caros privilégios. A análise que pode ter várias orientações: psicanálise freudiana ou lacaniana, análise junguiana, terapia comportamental, holística, entre outras, nada mais é que um acompanhamento mental. Da mesma forma que fazemos consultas periódicas ao dentista, ou ao ginecologista, a mente também precisa de cuidados, e as doenças mentais precisam ser enxergadas com seriedade. Eu senti uma necessidade grande de voltar para a análise quando percebi que estava buscando a comida quando estava triste, e percebia a resposta sensorial de euforia no momento em que estava comendo uma pizza. E exatamente por que já fiz muita análise, pude elaborar o aviso de que algo estava errado na forma como a minha mente estava buscando compensações.

No meio desse processo que começou no final do ano passado,  tive uma discussão forte com a minha mãe quando estávamos saindo de uma loja de roupas na minha cidade natal no interior. Eu estava  mais uma vez frustrada com a falta de opções de roupas para uma mulher do meu tamanho, e como costumamos fazer com os nossos pais, descontei toda essa raiva nela, que enquanto me implorava para dizer como poderia me ajudar, dizia também que se preocupava com a minha saúde. No desabafo da fala e do choro que veio junto, pude entender que eu não tinha necessariamente um problema com o meu corpo, eu só queria explicar para a minha mãe o porquê daquele corpo que por alguns momentos poderia ser entendido como um fracasso. Uma semana antes dessa discussão com a minha mãe eu havia feito todos os exames relacionados a peso pedidos pela minha endocrinologista,  outro privilégio, e sabia que o meu corpo estava muito bem e saudável.

O que minha mãe e boa parte das pessoas não sabem, é que essa ideia de que os gordos não são saudáveis é uma criação social que se tornou verdade, talvez a mais duradoura fake news que se tem notícia. O problema do padrão estético, e também do chamado índice de gordura corporal (IMC), que já não é mais usado como ferramenta por boa parte dos nutricionistas, é que eles se valem de uma régua idêntica para medir milhões de corpos diversos, criando uma onda terrorista do que é ou não um corpo saudável.

A conversa com a minha mãe, outro privilégio de ter uma família atenciosa para dá suporte, serviu para que eu estabelecesse um ponto de partida. Foi um momento de catarse parecido com o que tive na descoberta do feminismo, em relação a questões como a sororidade, assédio e intuição feminina. Depois do desabafo pude estabelecer quão bem sucedida era minha vida, e que havia também alguns fatores de alimentação, bem estar e preparo físico que eu gostaria de melhorar. Só isso.

Foi depois desse momento que busquei uma nutricionista para me orientar, e que depois de olhar meus exames, fazer uma entrevista profunda sobre meus hábitos alimentares e sociais nesses últimos três anos,  levantou a possibilidade de uma alergia tardia a glúten ou lactose, e me orientou a ficar trinta dias sem consumi-los. Então, dentro dos limites da minha auto-disciplina meio torta, fiquei sem comer praticamente tudo que estamos acostumados: massa, queijo, salgadinhos, tortas, chocolates, CER-VE-JA. Uma dieta que restringiu muito a forma como me alimentava fora de casa, meu convívio social, e que eu consegui seguir através do privilégio de ter o companheirismo das pessoas que amo, o acompanhamento semanal com a analista, e de novo, o poder financeiro para comprar os remédios manipulados que serviram como suporte para essa detox.

Tudo indica que eu talvez consiga emagrecer os sete quilos restantes que tenho como objetivo, mas se isso acontecer não vai ser por que tomei vergonha na cara, mas porque eu sou uma mulher muito privilegiada.
Aufwiedersehen!!

Não subestimem as selfies. Elas salvam a auto-estima em dias ruins.