E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Dobrar o tempo

Foi ouvindo ao episódio "Socorro!Eu faço tudo ao mesmo tempo!", do Podcast "É nóia minha", da Camila Fremder, que não foi possível fazer tudo que eu pretendia naquela manhã de quinta-feira. Tudo começou quando eu consegui marcar a muito custo uma massagem gratuita, que eu supostamente teria direito mensalmente através do meu aplicativo de academia de ginásticas, uma espécie de Gympass aqui da Espanha. No grande dia acordei em cima da hora e fiz questão de revisar um texto que eu estava fazendo para o Delirium Nerd sobre a Vampira dos X-Men. Eram 10:50h quando eu finalmente consegui sair de casa para ir rapidinho ali na academia enquanto ouvia ao podcast, fazia um pouco de bicicleta, musculação, e claro, aquela sauna seca básica antes de correr para a massagem. A sauna estava maravilhosa e eu talvez tenha ultrapassado cinco minutinhos que estragaram tudo na sequência, e ainda tive que passar em casa no caminho para que minha amiga pudesse jogar o cinto que eu tinha esquecido de colocar na mochila da academia, e a minha calça já estava quase na metade da bunda mesmo. Quando olho para o relógio, são meio dia em ponto, e o cálculo para chegar na massagem é de dezoito minutos a pé. Ando rapidamente, querendo ultrapassar todas as previsões do google maps, fazendo travessias perigosas nos sinais fechados de grandes avenidas, mas chego no que seria o número do local de massagem. Nem sempre se vê a numeração dos prédios em Barcelona, e nesse caso eu estava na maior avenida a Gran Via, e na cidade existem essas esquinas cestavadas que quase formam uma pequena rua em cada travessia. Através da minha visão horrorosa de mapa no google, supus estar em frente ao prédio correto, e nesse momento já eram 12:20h. Enquanto eu tentava me localizar,  meu massagista já indagava onde eu estava, que era em frente ao prédio. Ele então me orienta a entrar porque a a porta já está aberta, eu obedeço e entro em um lugar antigo e belíssimo, com uma espécie de vitral nas janelas, e somente escadas. Subo os quatro andares lembrando que existe o entresuelo, então na verdade a massagem fica no quinto andar que eu tento subir o mais rapidamente possível depois de fazer musculação e correr até ali, contendo o grande impulso de tirar fotos naquela escada tão bonita. Chegando no quarto andar completamente sem fôlego, tento tocar a companhia, vejo que não há ninguém, e então meu massagista as 12:24h pergunta no whatsapp: "Você está mesmo no 662"? Eu não sabia, não tinha número, só parecia pelo google maps. Desço correndo e busco pelo estacionamento que ele diz ter em frente ao local da massagem, que fica exatamente na esquina cestavada maldita, entro e encontro uma senhorinha na recepção, um elevador Glória a Deus, agora vai! Ao encontrar o massagista já um pouco irritado com os quinze minutos de atraso, ele me avisa que temos de dar entrada no aplicativo de academias antes de começar. Tento sem sucesso e o aviso, esse aplicativo está fatal! Ele me olha como quem não pode me ajudar, e eu insisto: acabei de entrar na academia com ele. E então ele me dá a sentença: você não pode dar duas entradas no mesmo dia nesse aplicativo. Como em "Corra Lola, corra!", penso em tudo que eu andei e subi de escadas em câmera lenta e rewind. Quero chorar? Um pouco. Mas não tem problema, isso acontece, e peço para marcarmos um novo horário: "No tengo más citas". 

E aí tem a virada da maturidade. Desci as escadas pensando como ele era grosso, e que ótimo que uma pessoa com energia tão ruim não me massageou, mas vamos combinar, porque eu quis fazer tudo isso? Existe uma espécie de urgência minha de dobrar o tempo, de sentir que eu tenho alguma agência sobre as coisas que acontecem, e eu confesso que algumas vezes sim, consegui fazer tudo que queria - mas não tentem isso em casa. Claramente não foi o caso naquela quinta-feira, e enquanto eu senti o suor escorrendo pelas minhas costas e virilha depois de toda a correria, um choro saiu bem triste no início para terminar com uma risada de pura autoironia. Fiquei pensando nas tantas vezes que  literalmente me espatifei no chão porque queria atravessar o tempo, para além das minhas capacidades. Pensei no último ano e em como eu me senti irrelevante frente aos acontecimentos, como era inútil estar na minha pele e em como aquilo estava me sugando a energia, mas sim, foi um grande exercício de modéstia. Não farei as pazes com as lições do universo e continuarei desafiando o tempo porque essa sou eu, mas posso dizer que aprender a rir quando acontece o inevitável e dá merda.

A única foto que eu consegui tirar do prédio abandonado cujas escadas eu subi


Aufwiedersehen!!

sábado, 7 de setembro de 2019

Eu sou uma mulher grande

Outro dia uma nova colega de trabalho me fez a pergunta que as pessoas vêm fazendo a minha vida toda: quanto você mede? Não é uma pergunta que costuma me irritar, na verdade sinto que no momento em que respondo os "um metro e oitenta" consigo uma aprovação de que eu sou mesmo uma mulher grande. Mas minha colega ainda quis saber se eu gostava de ser alta, e no final do expediente falando para todas aquelas novas pessoas ouvirem, eu me peguei confessando como havia sido ruim ser a pessoa mais alta da sala, da festa, de todos os lugares que eu ia quando adolescente. Incluindo os homens.  Confessar isso me deu um refluxo daquelas sensações, de além de me sentir desengonçada como qualquer adolescente se sente, de me sentir exposta demais, literalmente, e já sem a proteção da infância. Costumava brincar como compraria rapidamente um sapato que me afundasse no chão para que eu pudesse pelo menos por alguns momentos ser tão bonitinha de mãos dadas com um cara que pudesse me proteger, para que eu pudesse como minhas amigas, abraçar um cara com a cabeça no peito dele, eu só queria ser comum. Mas tem algo mais complexo dentro desse complexo da garota alta, porque nunca fui apenas alta, eu sempre fui grande. Minha risada é escancarada, eu gosto de comer rápido e voluptuosamente, eu amo demais, sofro de forma equivalente, ando rápido tropeço e caio no chão, quebro coisas e até a forma como piso no chão é barulhenta. Confiava demais nas pessoas porque as idealizava, e na idealização delas eu idealizava a mim mesma. Fui sendo quebrada pela vida como qualquer pessoa, mas não consigo deixar de ser grande,  excessiva. Até que há exatamente quatro anos eu estava deitada na praia tomando sol com uma amiga, e em meio às sensações do mar, da areia, da irmandade, tive uma epifania: eu gostava de ser grande. Depois de trinta anos eu senti que havia finalmente me aceitado, e precisava ser essa aceitação total e não somente na altura. Eu pensava la na adolescência que por ser tão grande eu era menos mulher, e na verdade até hoje por trás dessa aparente força existe aquela garota cuja cabeça você sempre via passar no meio de uma festa do clube, e eu não quero que ela vá embora nunca, e para que ela siga viva dentro de mim, eu preciso honra-la a despeito da sociabilidade feminina. 

Aufwiedersehen!

    Lana Del Rey / reprodução

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Deixa eu ver se eu entendi direito

Dizem que quanto mais lemos mais ignorantes ficamos, e eu concordo completamente com essa afirmação. O estudo é como uma válvula de zoom out, que te joga para um andar acima, te mostra gradativamente quão distante você se encontra de tudo, e como suas confortáveis verdades não fazem sentido dentro de um contexto maior. Aliás, o que é a Verdade na época da Pós-Verdade? Um pequeno vislumbre, um dejá vu. Não acho necessariamente que isso seja algo ruim, a Verdade nunca existiu de fato porque ela depende de muitas variáveis para ser comprovada, e podemos agradecer o Trump por isso. Está tudo muito claro, não a Verdade, mas quem dentre nós escolhe manter-se lá no térreo, pensando no conhecimento sem perspectiva, e principalmente quem não se mantém atento sobre o perigo de uma única história, normalmente contada por aqueles que estão no poder. Mas não leve a sério esta narradora, porque estamos todos no térreo, só consegui em alguns momentos passear no segundo andar, talvez. 

Em Sapiens livro escrito pelo filósofo israelense Yuval Harari, descobri que nossa espécie hominídea prevaleceu no esquema da evolução não pela nossa força ou inteligência, mas pela nossa capacidade de criar o que? Ficção! Foi através da primeira retórica criada, digamos assim, que o Homo Sapiens falador pôde liderar outras pessoas e subjugar espécies muito mais fortes, como o Neandertal. Isso acontecia por que em grupos eles passaram a se tornar mais potentes. Mas e aí? Para onde essa capacidade de inventar coisas nos levou?

Por exemplo, o dinheiro é na verdade apenas um papel que concordamos ser dotado de valor. Do advento da agricultura e quando deixamos de ser nômades, o Homo Sapiens que melhor sabia usar a ferramenta da retórica - que é a observação de uma realidade onde se pode criar uma narrativa a seu favor - se tornou líder, e a partir dessa liderança ele conquistou o PODER. E quando somamos poder com posses temos um sistema que forma a base da nossa concepção humana e ele anda bem comentado ultimamente: o Patriarcalismo. Mas ele não se trata necessariamente da questão homens x mulheres, mas de toda forma de exploração e da ideia de que existe um vencedor e um perdedor. E então vieram as guerras, e esse jeitão autodestrutivo que estamos MAIS DO QUE ACOSTUMADOS, porque veja bem, a Amazônia.

O mais interessante sobre o Homo Sapiens, toda essa criatividade e o porquê de o humor ser tão necessário para analisar a nossa existência, é que um dia resolvemos que íamos comer carne animal. Podemos falar da cadeia alimentar, sobre como é natural comer outros bichos, mas houve tempos mais tranquilos em que nos alimentavamos perfeitamente bem da coleta. Além do fator alimentação, éramos ativos porque caminhávamos pelo campo, não tínhamos horário para nada e estávamos em contato com a natureza. Tudo bem comprar essa experiência, afinal existem milhares de retiros caríssimos onde você pode viver exatamente isso, com exceção de que você não precisa catar a sua própria comida, ela segue caríssima e crua na sua mesa de mármore toda manhã. Depois se segue livre para inalar toda a fumaça que nós mesmos soltamos todos os dias dos nossos carros que seguem parados na rua.

Tudo isso porque estabelecemos um horário comercial para fazer um trabalho que poderíamos realizar de casa - com exceções - porque lembra, inventamos uma coisa mágica chamada Internet. Eu entendo como quase ninguém tem a autonomia financeira para reinventar o processo, e claro que eu estou falando de um lugar cheio de oportunidades, mas precisamos sempre lembrar do contexto. Não existem vilões e mocinhos, Lulas e Bolsonaros, repetimos apenas e por milhares de anos os arquétipos de poder, enquanto o sistema que nós mesmos inventamos se mostra cada vez mais falido e suicida.

E então a Amazônia vem sendo violada agora pelo Bolsonaro, além do estrago já feito há alguns presidentes atrás, mas agora de forma muito mais acelerada que antes. A grande questão é que resolvemos comer muita carne, e essa carne precisa ser criada. E dentro da nossa grande inventividade convencionamos entender que os animais não têm sentimentos e por isso são inferiores a nós, o que nos permite aceitar que eles sejam mantidos em campos de concentração que ocupam espaços maiores que estádios de futebol pelo mundo. Isso tirando gatos e os cachorros que levamos para passear e sentar conosco na parte de fora daquele café descolado enquanto comemos um sanduíche de pastrami.

E a Amazônia? Ela precisa dar espaço para mais gado, e também para o alimento do gado. Mas o problema mesmo está no nosso canudo de plástico.

Antes que apontem a minha hipocrisia, fiquem tranquilos, eu me auto-declaro hipócrita, privilegiada morando na Europa e desesperada, porque eu não enxergo saída no meio de toda essa novela de muito mal gosto que nós mesmos criamos, e eu nem entrei no mérito do gênero.

Aufwiederdesen!


                   
                               Esse livro é um alento              




sábado, 3 de agosto de 2019

Rituais de passagem


Ainda não tenho trinta e quatro anos no Brasil, mas aqui no futuro sim. São 3:49h em Barcelona e eu despertei no meio da noite. Comi pizza demais, com gosto, ciente do meu excesso e acho que atacou meu fígado. A sorte do dia foi encontrar um Dramim remanescente na minha caixinha de remédios, que muito em breve deve “bater” e me derrubar novamente. Enquanto isso não acontece pensei em fazer um pequeno ritual de despedida dos trinta e três que eu sigo tendo lá em Araras, onde eu nasci, e porque eu aprendi também nesses últimos anos como os rituais são importantes. Comecei acendendo um incenso cheiroso no banheiro, todo mundo sabe que incensos são inevitáveis em rituais, tomei um banho morno, usei meu sabonete reikiano presente da minha amiga bruxinha, sussurrei alguns agradecimentos e a existência da água. Imitei a Xuxa na propaganda da Monange, e hidratei meu corpo até os pés, agradecendo imensamente a eles por terem sobrevivido ao esforço imenso dos últimos meses. Esse último ano foi diferente de todos, uma passagem curiosa por outros ambientes e dimensões. Voltei a ser aprendiz, a ser café-com-leite, e não foi fácil para o meu orgulho de leoa. Tive que ouvir muitas coisas que talvez não merecesse pela primeira vez, mas não refutei nada, apenas ouvi, e alguma coisa mudou dentro de mim.

Nesse último ano uma família russa me salvou do isolamento de ser uma pária sem papéis e sem função, me aceitando como cozinheira. A belíssima Ksenia com sua suavidade sofisticada - sinto que poderíamos ter sido boas amigas se houvesse tempo - mãe da Sasha, a caçula que era uma espécie de Hodor bebê sempre oscilando entre repetir o próprio nome e chamar por sua “mama” que respondia no materno russo, enquanto interagia no castelhano com o filho do meio, Ernest, um loirinho de oito anos gorducho e muito serelepe que vivia correndo atrás de mim me perguntando se faríamos “blinis”, crepes em russo. E o primogênito e sóbrio Andrei com seus doze anos tão solenes, aspirante a cozinheiro e guitarrista, via-se que era um grande parceiro para a Ksenia no momento que chegava independente com seu patinete da rua, e eles conversavam na língua do meu amigo Dostoievski. Foi emocionante preparar uma moqueca para eles, aprimorar minhas técnicas de risotto, e também apresentar a nossa versão brasileira do strogonoff. 

La moqueca
              
Quando meus papéis saíram em fevereiro procurei outro trabalho, e não havia tempo para escolher muito, o que me fez aceitar a oferta para ser “portera” de um restaurante self service nas famosas Ramblas. Meu chefe era o Gabrielle, um italiano muito cortês que sempre fazia questão de abaixar o toldo quando o sol batia bem no meu rosto por volta das 13h até às 15h. Eu trabalhava cinco horas por dia durante quatro dias na semana e folgava dois. Trabalhei todos os fins de semana no mês de março, e pude acompanhar todos os turistas passando na minha frente, oferecendo as nossas propostas de buffet por 12,95 euros para comer a vontade, enquanto levantava a tampa da grande paellera para mostrar seu conteúdo tradicional, quase sempre seguido de algumas interjeições de admiração. A paella não era lá aquelas coisas, mas era revigorante poder comer tudo que eu quisesse no final do expediente, não existe lugar mais feliz para mim que restaurantes. Acho que só perde para cinemas. 

La portera
                                             
Eu fiquei no restaurante por apenas um mês porque em abril fomos para o Brasil, e de repente eu vivia o sonho de estar deitada no colo da minha mãe, ou cozinhando para meus pais, ou no karaokê em São Paulo com meus amigos, ou no bar em Araras com minhas amigas. Andei de ônibus por São Paulo como uma criança que volta de um acampamento e dorme novamente em sua cama. Não existem dúvidas de que o Brasil é onde eu quero estar, mas precisou ser uma visita dessa vez. Na volta para Barcelona consegui um novo trabalho, além da Ksenia, preparando o almoço para a família da Natalia/Natasha e sua bela família, e me encantei pela pequena Aurora de sete anos, a filha do meio, muito prolixa e que me contou sobre sua paixão por Harry Potter depois de elogiar meu ceviche, um garotinha com ótimo gosto.

E finalmente, pelas madrugadas de sexta e sábado comecei a trabalhar em um bar balada, o Miramelindo, que é um dos mais antigos de Barcelona e fica no Passeio de Born. Lá eu respondia para a Merida, uma mulher forte filipina que havia começado no bar como faxineira a dez anos, e que hoje gerenciava um staff de dez pessoas todas as noites. Tenho quase certeza que a Merida não me curtia muito, não sei bem porque, talvez esse seja um dos muitos momentos novos na minha vida, não que eu seja super adorável, mas eu costumo não entrar no caminho das pessoas e  sempre sorrio, é um cacoete, não consigo evitar. Trabalhar como garçonete foi muito duro, e no Miramelindo o ritmo era frenético, centenas de pessoas passavam por lá, e eu me via de repente tendo que equilibrar mojitos cheios em uma bandeja enquanto subia uma escada em caracol, e só Deus sabe como eu odeio escadas caracol. Não tenho muitas queixas quanto a esse período de quase dois meses em que estive na night, as pessoas no geral eram muito simpáticas, tirando alguns bêbados chatos no caminho. Aprendi a importância que tem uma propina, a gorjeta daqui, e como é terrível quando os clientes insistem em ficar no bar depois que parou música e todos estão loucos para ir pra casa tomar um banho ou apenas sentarem-se.

                                                                        La camarera
  
E numa sexta-feira a tarde, voltando da Natalia, e enquanto ainda esperava a resposta de uma entrevista de trabalho em tempo integral, resolvi pedir as contas para a Merida. Me sentia esgotada e meus pés recém recuperados da fascite plantar latejavam pensando em mais horas em pé, subindo e descendo escadas. Foi uma intuição de que já era hora de voltar para o mercado, que o período de experimentações havia passado. Sempre tive essa curiosidade de trabalhar em um bar, e boa parte do que eu esperava estava ali mesmo, a camaradagem dos camareros, o clima animado das músicas dançantes e das pessoas se divertindo, e com certeza foi divertido preparar drinks e trabalhar na barra, como uma bartender nos momentos em que não havia tanta gente no bar e a Merida me deixava brincar no caixa. Mas aquele momento havia passado, e então na segunda-feira eu soube que havia passado na entrevista, e hoje trabalho com vendas para uma empresa grande, e vou para o meu escritório ao lado da praia de shorts trabalhar. Fecho meu ciclo e sonho com bastante tédio e nenhuma bandeja ou escada em caracaol para o próximo ano.


Aufwiedersehen!!

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Uma feminista precisa se sentir bonita?


Todos conhecemos o velho estereótipo da feminista feia, masculinizada e que não se depila, e acho que se você está nesse espaço lendo um texto meu, você já está cansada de saber que isso é uma balela por vários motivos, o maior deles sendo que a beleza, resumidamente, é formada por diversos padrões criados pela sociedade patriarcal como forma de submeter as mulheres - e também os homens, mas não principalmente - a um ideal inatingível, até mesmo para os brancos, loiros, magros, altos de olhos azuis e cabelos lisos. O padrão muda no decorrer dos tempos, uma época nossas mães fizeram permanente porque nos anos oitenta ter cabelo encaracolado era um must, e aí nós crescemos e na nossa adolescência conhecemos o tal do alisamento japonês. Tem todo um movimento que  corre paralelo ao chamado status quo - ou tudo isso que conhecemos como uma determinada forma de ser e agir escrita pelos detentores do poder aka homens brancos ricos de meia idade - que é o contra-ataque dos que foram subjugados por esse sistema, as chamadas minorias sociais, leia-se como um determinado grupo de indivíduos que não necessariamente estão em menor quantidade como mulheres e negros no Brasil, mas que são considerados minorizados por absorverem um pedaço pequeno do poder na decisão desse tal de status quo. Lembrando sempre que o sistema patriarcal não representa necessariamente os homens, mesmo eles sendo ainda em todos os lugares do mundo de formas diferenciadas os detentores maiorais deste poder, o sistema patriarcal é um modelo muito engenhoso que sempre assimila meios para garantir o status quo em um tipo de guerra fria que vem sendo gerida com êxito durante séculos de mãos dadas com o capitalismo como o conhecemos, é a ideia simplista de perdedor x vencedor, é a meritocracia, é o lucro acima de tudo, a objetificação e consumo. Chegamos a um ponto em que precisaremos falar seriamente sobre mulheres brancas - meu grupo social - e como vamos desenvolver essa quarta onda feminista de forma interseccional ou se vamos simplesmente reproduzir comportamentos machistas perpetrados por homens dentro do sistema patriarcal.

Dando essa breve revisão de onde vem a minha indagação para esse pensamento, que é algo que eu venho debatendo constantemente internamente e com amigas, é sobre até que ponto podemos pensar em beleza de forma consciente e não como vítima desse ciclo? Exemplo, meu corpo tem um formato pêra, isso significa que eu tenho pernas grossas, quadril, bumbum, uma gordura localizada um pouco abaixo da minha cintura que já não é muito bem desenhada, seios pequenos e ombros estreitos. Não vou nem entrar no mérito de que meço 1.80m e tenho a cabeça, as mãos e os pés pequenos demais para a minha estatura, isso merece outro texto. O que quero exemplificar aqui é que como boa parte dos adolescentes eu tive um desenvolvimento muito repentino de garotinha de treze anos meio gordinha e barriguda para adolescente super magra, alta, com os cabelos em polvorosa. Cheguei a usar sutiã com bojo de óleo para dar uma qualidade natural aos meus falsos seios, e tinha pesadelos na hora de comprar biquínis por conta dessa gordura insistente abaixo da cintura. Meus cabelos sempre foram finos, mas eles não se decidiam entre o enrolado ou o liso, então eu nunca soube muito bem como tratá-los até outro dia com trinta e poucos anos. Essas são histórias de uma menina que cresceu em uma família com dinheiro consideravelmente dentro dos padrões, e esse é o meu lugar de fala aqui.

A minha consideração agora adulta e madura com quase trinta e quatro anos, é sobre a possibilidade de me sentir bonita além dos padrões. Sobre o privilégio de enxergar fora deles e encontrar o meu estilo. Houve um tempo em que eu reneguei a questão da beleza a um quarto plano de importância no movimento de empoderamento - essa palavra é a camisa da CPF dos termos que temos um pouco de vergonha de usar - mas hoje eu percebo a importância de também sentir-me bonita, e isso aconteceu quando eu tive que cortar o meu cabelo. A referência era um curto estilo Meg Ryan em Cidade dos anjos, com os cachinhos charmosamente caídos em cima do seu rosto, eu amava aquela coisa meio angelical, meio andrógina, mas decidi esperar o meu casamento passar para copiá-lo, e quando eu finalmente fiz o corte pareceu como um reencontro comigo mesma, as roupas combinavam, o cabelo me inspirava em um ciclo completo de criatividade. Me dei conta de que por mais que a ideia de beleza seja uma ficção humana, é impossível alija-la de nossas vidas, melhor mesmo assumir a sua importância e fornecer possibilidades para que as pessoas encontrem o seu melhor eu dentro do que elas acreditam como belo. 

Como extra, eu sempre fui apaixonada por esses programas de “antes e depois”, desde o programa da Xuxa até o Esquadrão da moda, mas existe uma pequena revolução acontecendo no Netflix com Queer Eye, um reality com cinco homens homossexuais que oferecem consultorias diversas que vão de estilo a decoração da casa, psicológica, gastronômica e de cabelo, para pessoas chegarem a seu total potencial como ponto de partida para uma vida mais plena. Se dê esse presente, é lindo de ver!

Na série Fleabag existe uma sequência maravilhosa onde a protagonista Fleabag e sua irmã afirmam que "cabelo é tudo",  e todos rimos muito, mas o cabelo foi mesmo construído como uma parte importante da nossa identidade, e esse corte não fez sucesso com o marido e acredito que com muitas pessoas, mas a ideia de fazer sucesso comigo mesma foi incrível.



Aufwiedersehen!!

terça-feira, 14 de maio de 2019

Estou escrevendo um livro

Eu entrei em um daqueles períodos de pausa em que não tenho coragem de escrever. Esse blog tem mais de dez anos e posso dizer que não foram tantos os hiatos, mas sinto que esse último que passei foi o mais importante. Não era como se eu não tivesse sobre o que falar, muito pelo contrário, era mais uma sensação de medo do que poderia surgir, medo de colocar o dedo na garganta antes de vomitar. Existe também agora o medo de escrever besteira, algo frívolo ou vaidoso demais, essas coisas que passam pela cabeça quando se pretende escrever a tal da não ficção.

Quando releio esse blog me irrito e fico com um pouco de vergonha das minhas repetições, como essa de elaborar a minha intensidade. Tem outra coisa que eu repeti várias vezes aqui, mas esqueço de repetir para mim mesma: não somos importantes. Esse é o tsunami da geração millenium, o fantasma que espreita o canto da mente de cada um de nós, de que não somos especiais e que provavelmente poucas pessoas ligam ou estão prestando atenção no que estamos fazendo - a não ser que sejamos influencers, aliás, sobrou algum de nós? Era para ser libertador.

Eu tenho ouvido muitos podcasts e como acabo de sair de uma entrevista fracassada em inglês com o feedback oficial de que meus concorrentes conseguiram responder de forma mais detalhada e clara os exemplos hipotéticos levantados pelo entrevistador no âmbito do trabalho que eu estava me propondo a fazer, resolvi ouvir a um podcast em inglês da escritora, show runner, diretora e atriz Lena Dunham, criadora da série Girls, que foi um divisor de águas na narrativa de mulheres em séries e filmes, uma super inspiração, e especialmente uma pessoa que eu invejo bastante por já ter realizado tanto e ser ainda um pouco mais nova que eu - estou obcecada por essa coisa de idade x realizações e morro de medo de ir até o fim desse meu sonho de também ser criadora, pode dar muito errado, e acho que já tem dado, mas também pode dar muito certo, é aí eu tento lembrar que o Saramago escreveu o primeiro livro depois dos sessenta. E voltando ao ponto anterior, no podcast da Lena, em um episódio onde ela aborda a amizade entre mulheres, um dos temas mais queridos da minha vida, ela e a também escritora Ashley Ford leem as trocas de e-mails que fez com que se tornassem grandes amigas. Em uma das passagens Lena diz que admira o fato de Ashley ter dito ao mundo que estava escrevendo um livro porque isso fazia com que agora o mundo pudesse cobrar esse livro dela, tornando-o assim uma realidade. Outro dia também uma amiga me tageou em uma postagem do Instagram sobre o ato de escrever e como muitas outras coisas que não são simplesmente digitar algo no computador também são escrita, como pensar em uma história, observar, inspirar-se, viver, tudo isso faz parte do processo, e eu tenho vivido, muitas coisas, especialmente sensações que eu ainda não sei muito bem como descrever, mas eu prometo que vou tentar, nesse livro que eu estou escrevendo. Agora tá dito.


Aufwiedersehen!!

quinta-feira, 7 de março de 2019

Transcendentais

A Netflix finalmente divulgou a data da segunda parte de uma das séries que mais me impactaram  na vida desde The Lefovers, a controversa O.A., que só é controversa porque é aquele tipo de realização que se ama ou odeia, e na maioria dos casos, meus conhecidos pelo menos, odiaram. Podemos dizer que essas pessoas devem ter assistido errado? Não, mas talvez sim, essa postagem vem também inspirada por alguns livros que me fizeram repensar a experiência humana não só na Terra, como em nossas mentes e maneira de ver o mundo, do nosso critério de julgamento e a necessidade de concordar ou não concordar com as coisas. Espero conquistar alguns amigos de exatas a entrarem comigo nesse caminho tórrido e delícia da abstração.

Essa onda de inspirações transcendentais veio primeiro para mim quando li a trilogia 1Q84 do autor japonês Haruki Murakami, em uma narrativa muito louca, aliás tudo é louco nesse post, sobre o "povo pequeno", envolvendo um livro escrito por uma menina e depois totalmente reeditado por um homem, enquanto no paralelo seguimos a história de uma colega de infância desse mesmo homem que agora tem uma vida dupla como personal trainer e assassina, além da existência de duas luas no céu. Desejo pra todo mundo essa sensação de se viciar em um livro, melhor ainda quando é uma sequência, essa euforia de descobrir os desdobramentos da história, e Murakami manja muito de binge reading, no final de cada livro ele te deixa com uma bomba na mão.  Isso que vou dizer não configura spoiler, mas na época fiquei extremamente desapontada com o final do terceiro livro e de toda a saga, não senti que tive as respostas para as perguntas lançadas e fiquei recalcando uma ofensa pessoal enrustida pelo Murakami, a ponto de vender a trilogia no Enjoei, logo na sequência e de raiva (me arrependo).

Anos depois, seguindo a indicação de muitas pessoas, fui ler A vegetariana, da sul-coreana Han Kang, baseada em um conto antigo, e que conta a história de uma mulher que de repente e por conta de sonhos misteriosos desiste de comer alimentos de origem animal, o que desenrola toda uma derrocada social, desde o fim de seu casamento até o abandono de sua própria família, menos da irmã mais velha, que representa seu oposto, uma mulher bem sucedida nessa sociedade em todos os sentidos, e acredito que é sobre isso que o livro fala, sobre a dificuldade de se encaixar em uma sociedade, especialmente para mulheres, especialmente no contexto da Coréia do Sul. Assim como em 1Q84, não temos as respostas que objetivamente buscamos para as questões levantadas no livro, mas dessa vez eu já estava preparada, e pude sobressair-me da linearidade da história para conseguir olhar para as mal fadadas entrelinhas. E que puta experiência é esse livro, talvez seja um livro melhor que 1Q84, aceito opiniões, por favor!

E finalmente, dias desses terminei A infância de Jesus, do sul-africano Coetzee, ganhador do prêmio Nobel de Literatura, e um dos livros mais esquisitos e sem uma narrativa clara que eu já li, o que não me impediu de devora-lo em três dias. No livro sempre referido como "Ele, Simón" é o protagonista a quem seguimos nas tentativas e erros de buscar uma educação adequada a seu protegido, David, que é o filho de Inês, encontrado em um suposto barco que leva as pessoas por um travessia para outra vida, não se sabe muito bem de onde, mas que chega em Estrella. Para ter uma ideia, não existe um personagem Jesus no livro, e isso também não configura spoiler. Aqui temos questões filosóficas, principalmente sobre a ideia de verdade, mas nunca da forma como estamos acostumados a percebe-las. Não a toa, o centro do livro e os acontecimentos mais doidos acontecem em uma escola de dança que busca "descer" os números das estrelas como base de toda a educação das crianças, e que nunca explica seus ensinamentos, por acreditarem que algumas questões só podem ser compreendidas através da dança que é ensinada na escola. 

Eu sou uma pessoa viciada por aprender coisas, lembro de ter ficado enlouquecida quando me mudei para São Paulo por conta da imensa disponibilidade de cursos de todos os tipos, e mergulhei em todos os que tive vontade, desde edição, roteiro e literatura, a um curso de mestre cervejeira (quando ainda não era pop), e locução. E todos esses livros falam sobre comunicação, como transmitir conhecimento, ou alguns caminhos possíveis na tentativa de encontrar empatia pelo outro, mas não existe uma resposta única para isso, a verdade é inatingível, só existem perguntas e indagações. O que quero dizer é que precisamos fazer um esforço real para transcender o ego, permitir que os nossos sentidos e corpo façam as vezes da leitura de mundo que temos. O ego serve para praticarmos a vida em sociedade, mas ele falha miseravelmente ao tentar nos ajudar a compreender a experiência humana que é imensa e complexa.  No livro que estou lendo agora e que acho que deveria ser obrigatório, As paixões do ego, de Humberto Mariotti, há um trecho interessante sobre forma como encaramos o místico e a arte como formas inferiores de entender o mundo quando comparados a ciência, mas esquecemos que a ciência também nasceu desses lugares: "O lado 'artístico' dos cientistas e técnicos costuma ser lembrado como uma espécie de tentativa de 'humanizá-los'. Nessa ordem de ideias por exemplo, a dimensão 'espiritual' de Einstein e o lado 'esotérico' de Newton são sempre recordados. E com dupla finalidade: pelos místicos, como 'vantagem competitiva', pelos cientistas como um pecado a tentar esconder. E assim por diante. O mundo precisa ser descrito e ter a sua história contada numa linguagem clara e simples, e não na dos especialistas, sejam eles cientistas ou magos".


"A persistência da memória" - Salvador Dalí


Aufwiedersehen!!



segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

O dia de São Valentim e o romance


Crescemos buscando esse algo mágico fora de nós, uma estética imaginada com trilha sonora, fachada, risos e coincidências charmosas. Mesmo enquanto desbravamos o mundo construindo relações profundas de amizade, seguimos sendo induzidos pensar que tudo não passa de apenas um prelúdio para o que está por vir, para ser "completo". O amor romântico é a maior droga assimilada como gás tóxico e democraticamente espalhada para que toda a sociedade o aspire. É tóxico porque é construído como mérito, como dado, como perfeito. Ele não existe. O amor, esse realzão mesmo do peido compartilhado, da implicância por passar tanto tempo com a mesma pessoa, esse amor é trabalhoso. Ele demanda demais, demanda esquecer um pouco de si mesmo, mas com muito cuidado para não esquecer demais porque você precisa seguir sendo você. E quem é você? Esse é outro trabalho diário, que nutre em ciclos o amor a você mesmo enquanto nutre o amor em relação ao outro significativo. Adoro esses termos, “outro significativo”, “companheiro”, acho que dão muito mais conta de descrever o que é realmente escolher compartilhar a vida em um relacionamento sexual, digamos. Há milhões de formas de compartilhar a vida em relacionamentos amorosos, todas as possibilidades são possíveis se você encontra a coragem para expandir a ideia preconcebida do encontro. Se você permite sentir a vulnerabilidade de seguir a sua intuição para reconhecer os encontros que não serão muitos os realmente significativos.

Resolvi usar um aplicativo de videos para fazer um video do cotidiano desse cara (aqui embaixo), em comemoração pelo primeiro ano do nosso casamento no papel. Um fato curioso é que no dia em que fomos requisitar o casamento civil no cartório das Perdizes, e no caso a mulher como usualmente manda a convenção de escolher colocar ou não o nome do marido, apesar de ter amigas que passaram seus sobrenomes também para os esposos, acabei decidindo pelo não, e por um motivo bem mais simples que o feminismo: estávamos brigados. E já passaram quase cinco nessa brincadeira de relacionamento, só para perceber que a coisa é louca desse jeito mesmo, uma montanha russa. Ou talvez seja apenas a combinação maluca do meu. E é em um dos meus devaneios talvez mais sinceros já escritos que queria dizer que todo dia eu escolho ser eu mesma, mas prefiro ser eu mesma com ele ao meu lado, porque estou quase a ponto de aceitar todas as sombras dele. O problema é que existe um mundo de sombras minhas ainda para aceitar. E é apenas na possiblidade de contraste dessas sombras que só nós conhecemos sob a luz que fica mais evidente na intimidade, que podemos nos encontrar, trabalhando nesse amor, todos os dias, sem cessar.

PS: É igualmente maravilhoso não estar em um relacionamento.


Aufwiedersehen!!


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Artista

Minha irmã comentou comigo esses dias "você é talentosa, né?", acho que foi depois de eu ter inventado algo diferente na cozinha, ou de ter feito uma fotografia com o meu celular, a verdade é que graças ao ócio que tenho vivido, tenho tido tempo para escrever, ler, estudar, apesar de ter estado mais para exausta nessas últimas semanas, pelo inverno, pelo tempo que não passa, por ainda ter que viver em um apartamento com três desconhecidos e seguir contando cada uma das moedas de cinco centavos como se não houvesse amanhã. Sim, já me disseram várias vezes que existe um aprendizado aí, mas eu vou ignorar toda essa conjuntura externa por estar cansada de falar e reclamar dela. Vou dizer logo antes que perca a coragem: eu sou uma pessoa criativa. Não, isso foi mais um eufemismo covarde: eu sou uma artista! Caramba, saiu...que bom. Estou a fim de dizer isso porque eu ando atenta as coisas que a casualidade me diz e foram três filmes nos últimos tempos que reverberaram diretamente esse ser distinto que vive em mim, e ainda recuperei uma TED talk antiga que também faz alusão a esse tema.

Aqui a Liz Gilbert, autora do livro "Comer, rezar e amar" que depois virou um filme estrelado pela Julia Roberts, faz cair por terra aquela nossa imagem do gênio artístico autodestrutivo, que precisava do caos para criar por ser ele a própria fonte de inspiração. Acho muito legal como ela traz para a vida real essa profissão, como mostra ser possível desenvolve-la  de uma forma objetiva.

Nesse filme, "A incrível Jessica James", é uma professora de dramaturgia e teatro do ensino fundamental em uma escola pública de Nova Iorque, e além de ser um filme super divertido e leve, tem uma parte em que a Jessica encontra com uma dramaturga celebrada, e pergunta algo sobre "como chegar lá", e a dramaturga devolve pra ela a indagação sobre o fato de ela estar "fazendo teatro". Querendo dizer que se ela está criando, e ao mesmo tempo pagando suas contas ensinando teatro, se ela ama isso, ela já chegou lá de alguma forma, ela vive dessa paixão.

Nesse filme espanhol que mostra processo curioso de criação literária, talvez uma grande sátira ao ofício, tem uma parte em que o personagem do professor fala sobre como sempre existirão pessoas que vão achar seu trabalho medíocre, mas que se se ama escrever, o próprio ato já está te fazendo feliz, e isso deveria ser o propósito. O protagonista é um dos personagens mais desagradáveis que eu já vi, e o filme em si é meio desconfortável com todas aquelas pessoas suando em Sevilha, mas essa parte valeu a pena.

E finalmente, aproveitando uma sessão promocional de 1 euro esses dias, assistimos a esse filme de 1987, "O banquete de Babette". O filme é bem parado, construído para outra época e audiência, mas me identifiquei muito com Babette, uma outsider que foge da França e chega em um vilarejo na Dinamarca para mexer nas estruturas simples do povoado cristão ortodoxo, e ela faz isso oferecendo um banquete completo de jantar depois de ganhar uma quantia na loteria. No final ela dá uma ideia um pouco ingênua mas adorável do que é viver para criar: "Um artista nunca está pobre".

Talvez você que está lendo isso daqui também se identifique, então se permita perceber-se talentoso mas sem se sentir muito especial, apenas com um olhar sensível para as coisinhas do mundo. Quando minha irmã me elogiou, eu só consegui responder como era uma pena que esse talento não me trazia dinheiro, mas gostaria de emendar essa resposta triste para um grande obrigada. Escrevi o projeto completo de uma série de nove episódios, revi um roteiro de longa-metragem que havia escrito e reescrito em 2013, e ainda preciso reunir coragem para revisar o meu projeto de livro de memórias e ensaios que eu comecei em 2017. Sejamos corajosos para nós mesmos, deve bastar.

O google images mostrou essas imagens para "artista" - sem julgamentos

Aufwiedersehen!!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Uma mala que não foi perdida


Viajamos no final do ano para a casa da minha irmã em Lyon, e eu exagerei um pouco no tamanho da mala correndo um risco consciente de ter que pagar um extra caso fosse necessário despacha-la. Claro que o voo era low cost e só permitia mala de mão, pensava que esse conceito era totalmente abstrato a não ser que você estivesse com uma super mala de rodinhas, mas descobri na hora de embarcar que eles literalmente têm uma protótipo do compartimento superior do avião para que você tente fazer caber a sua mala que no seu entendimento seria de mão. Não era, mas consegui escapar dessa sem custo extra, glória a Netuno, ou ao deus do vento, do ar, dos voadores. Uma vez devidamente sentados em nossa poltrona, a minha ao lado da janela, relaxados por termos evitado outro gasto em nossas vidas já tão carentes de dinheiro, meu marido perguntou se havia algo de valioso na mala, porque “vai que…ela extravia”. E enquanto ele fazia a pergunta, acontece isso entre os casais algumas vezes, já imaginamos o que eles vão perguntar antes ou durante o momento em que eles fazem uma inquirição, e enquanto ele a fazia, um sorriso sereno perpassava meu rosto, porque o pensamento era sereno. Caramba, pensei, deve ser essa a sensação de desapego tão pregada pelos livros de auto-ajuda. Não é que não havia nada de valioso naquela mala, meu quimono vinho e azul marinho que comprei por trinta reais em um brechó coletivo plus size e que eu costumava usar para dar um ar dramático ao look, e nessa viagem levei só para usar como um tipo de roupão chique dos filmes enquanto estivéssemos dentro da casa da minha irmã com a devida calefação. Minhas botas caramelo de vinte euros e alguns anos estavam lá também, uma delas com a sola descolando de novo, mas que já me haviam protegido muito do frio. Fora isso um vestido antigo, algumas blusas de frio para usar embaixo, meias velhas, era resumidamente tudo velho mesmo, e muito querido. A própria mala era super velha, uma falsa mala de rodinhas que na verdade era uma mala mole normal, que parece ter sido artificialmente transformada em mala de rodinhas, com um zíper que não funcionava mais em um dos bolsos. A cor era um marrom de papel reciclável, uma mala de perdedores como nós, mas no bom sentido. Essa mala não somente não foi extraviada, como foi uma das primeiras a aparecer orgulhosa, a pobre, no rolo de malas. A segurei com carinho, como a um cachorrinho vira-latas muito velho que ainda consegue chacoalhar o rabinho. Eu era aquela mala, e acho que deve existir algum aprendizado no paradoxo que é nunca ser roubado ou perder coisas velhas e sem muito valor econômico. O universo deve valorizar os objetos despretensiosos. 

Aufwiedersehen!!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Sinceros, devaneios, Barcelona!!


Meu melhor amigo comprou passagem para vir para a Europa, e me pediu para fazer uma lista de lugares imperdíveis para visitar em Barcelona. No paralelo, comentei no facebook sobre a necessidade de desmistificarmos a vida aqui, e me pediram para aprofundar mais nesse tema. Já escrevi várias vezes em torno desse tema da desglamourização da vida fora do Brasil, mas nunca vou muito além porque costumo me sentir um pouco ridícula por estar vivendo pela segunda vez essa experiência, como aquele cara branco hetero que diz sofrer com o feminismo ou por ser bonito demais, ou pior ainda, me sinto ingrata pelas oportunidades que tive. De qualquer forma, e como um sincero devaneio que é meu, vou tentar me aprofundar, e como diriam os espanhóis, ¿Me explico?

Quando eu conheci Barcelona em agosto de 2009, me apaixonei pela cidade como boa parte das pessoas que já estiveram aqui um dia. Ela é quase sempre ensolarada, arborizada, com grandes ruas largas e confortáveis para caminhar no terreno prioritariamente plano, além das muitas praias disponíveis no centro da cidade com acesso super simples a pé ou de metrô, ônibus ou trem. São quatro as praias que ficam na cidade: Barceloneta, Mar Bella, Bogatell e Nova Icaria. Sendo a primeira a mais comumente escolhida pelos turistas e sempre super lotada, vai gradualmente diminuindo a quantidade de pessoas por metro quadrado até chegar na mais tranquila que eu acho que é a Nova Icaria. Vale enfatizar que em Mar Bella o público alvo é LGBTQ± e rola uns nudes além do tradicional topless feminino super liberado na Espanha. Interessante saber que Barcelona não era super badalada assim até o final dos anos 80, ela foi descoberta como um dos maiores destinos turísticos depois da revitalização realizada para as Olimpíadas de 92, e que segue trazendo frutos para a cidade até hoje.          


Eu cheguei aqui nove anos depois e casada, no auge do verão, e apesar de todos os problemas que já contei aqui, como o atraso ao marcar a Cita para entrega dos meus documentos*, e a fascite plantar*2, eu pude conhecer mais ou menos bem as opções de praias fora da cidade, fugindo um pouco da lotação tradicional de verão e dos turistas, coisa que eu deixei de ser logo que fui empadronada*3 na cidade. Minha praia favorita fica na cidade de Badalona (foto), a vinte minutos de trem mais ou menos de Barcelona dependendo de onde você sai, mas também tem antes San Adriá de Besos, depois Mongat também com nudes, e pro outro lado tem uma das que eu mais curti, Ocata, mas nela você paga uma taxa extra pra chegar de trem porque fica em outra zona (a taxa extra é de uns 2 euros, não descubra da pior forma sobre isso levando como uma multa, como nós levamos - 50 euros!). Todas elas têm acesso super simples via trem ou metrô, só precisa cuidar com o passe de trem/metrô/bus, sempre usamos por aqui o T10, que dá direito a 10 “corridas” por 01 euro cada, com integração no espaço de 100 minutos, se for comprar individual custa 2,20. 

                                              


Além das praias tem o Parque Ciutadela, outro lugar bem gostoso pra curtir o dia de sol, e que fica entre a Avenida do Arco do Triunfo que é bem bonito (foto), e o bairro de Born (foto abaixo), que é o começo do centro, uma espécie de Vila Madalena/Pinheiros de Barcelona, bem fofo e hipster, e ao lado dos bairros mais darks e zonas mais perigosas - no conceito europeu de violência - tem o Gótico e Raval, com suas ruas super estreitas onde fica fácil se perder, e lembra muito a vibe da rua Augusta de São Paulo. Aqui é muito difícil ter assalto a mão armada, mas rolam MUITOS furtos, de celular especialmente. Acontece que não adianta chorar, porque se o furto for de um valor inferior a 400 euros, a polícia nem vai atrás de averiguar. 

                                       

                                       

Aqui não é autorizado beber na rua, mas é aceito beber na praia e no parque, onde você tem acesso a cerveja e sangrias através da simplificação do termo “paquis”, que vem de paquistaneses ou qualquer homem com ascendência árabe mesmo, gritando seu famoso hino “Cerveza, Beer!”. Em Barcelona as pessoas são muito bem divididas, estereotipadas oficialmente: “Chinos”, são os chineses que dominam dois comércios, os bares com tapas espanhóis que eles reproduzem muito bem (tortilla, ensaladita russa, patatas bravas, olivas e pan con tomate), e os bazares que são espécies de 1,99 2.0, com TUDO que você possa precisar. Eles são mesmo incríveis, e estão quase sempre abertos, diferentes dos comércios nativos que fecham para a siesta (14-16h), ou o mês de agosto inteiro mesmo. Aliás, nada funciona em Agosto aqui. Os “paquis”, além de venderem cervejas, tem os supermerkats, que são mercadinhos abertos até mais tarde e aos domingos  (tudo fecha na Espanha aos domingos), para vender bebidas e produtos de mercado mais rápidos, um tipo de conveniência. E claro, existem os "sudacas", que somos nozes, mas nem tanto, os brasileiros são uma categoria a parte, apesar de não encontrar tantos por aqui. Acho incrível a oportunidade de conhecer mais sobre os países latino-americanos, aqui tem uma amostra de cada um deles, e meu sonho é um dia reconhecer cada um dos sotaques castellanos. 

Descobri esses dias que Barcelona é praticamente do tamanho de Campinas, com 1.5 milhão de habitantes, e como extensão realmente é bem fácil de conhecer, as ruas principais cruzam a cidade, com uma pegadinha que é a Diagonal, uma avenida enorme que cruza, como o próprio nome explica, a cidade diagonalmente, fazendo com que a gente tenha que andar um tanto quase em círculos toda vez que vamos atravessar uma rua em linha reta (foto). Os bairros mais conhecidos e centrais são: Poblesec, Eixample, Grácia, Born, Raval e Gótico. Eu morei em dois bairros que são considerados meio “periferia”: Clot e Sants.

Impossível andar em linha reta

Quando estava para vir pra cá algumas pessoas me falaram que se eu não soubesse o catalão eu estava ferrada: mentira. Outras pessoas me falaram que não é um bom lugar para aprender castellano: verdade. Me explico, as pessoas daqui falam igualmente o catalão e o castellano, então você vai se virar super bem com o segundo, mas realmente toda a comunicação da cidade é em catalão, e mesmo que eles falem castellano, não é o castellano da norma mundial, e é cheio do sotaque catalão, com expressões que só existem aqui. Tem sido realmente difícil evoluir na língua porque as pessoas tendem a misturar as duas línguas em uma conversa normal, super tranquilo! Pra quem fala inglês fluente é muito fácil conseguir emprego em Barcelona, é com certeza um diferencial ainda maior que no Brasil.


Sobre as principais atrações do arquiteto mais famoso do mundo, eu acho, Antoni Gaudí, temos a Sagrada Família que fica em Eixample, e que ainda está em construção e pretendem terminar em 2020, e cuja entrada vale uns 28 euros que você deve comprar com antecedência pelo site. Não, eu ainda não entrei na catedral, mas não vejo a hora de poder dispor dessa quantia para conhecê-la, todas as pessoas que entram não se arrependem, mas de qualquer forma é um espetáculo vê-la por fora, eu nunca enjoo. Depois da Sagrada Família você pode caminhar vinte minutos até o Passeig de Grácia que é como a Champs Elysée, com todas as lojas fodonas, e tem a La Pedrera e a Casa Battló. Não, não entrei em nenhuma das duas também, mas as entradas podem igualmente ser compradas em cada um dos respectivos sites super informativos. Por último e MUITO importante tem o Parc Güell, que eu entrei em 2009, uhuuuuu, e na época não paguei nada, mas que hoje tem uma parte restrita a visitação por 8 euros que você pode comprar na hora, mas aconselho a comprar antes porque esgota rápido e as turmas vão sendo postergadas para mais tarde sucessivamente.

                                         

Fora o circuito Gaudí há o Castelo de Montjuic com uma vista incrível da cidade e onde fica também o Museu da Catalunha, você pode entrar e fazer o caminho que é uma subidinha meio pesada pelo centro da cidade, ou pela Plaza España que nos oferece escadas rolantes maravilhosas para dar uma forcinha. Barcelona tem vários museus, como o CCBB com vários eventos, fora isso há centros culturais e atividades gratuitas na rua quase todo fim de semana, no verão (Junho-setembro), é praticamente todos os dias.                                     

É uma cidade razoavelmente barata para visitar se você curtir ficar na rua de boa e comer nos chinos e comprar a bebida nos paquis para tomar a cerveja na praça, como a Plaza del Sol em Grácia. A hospedagem é cara, e qualquer restaurante ou bar perto de Barceloneta ou do Passeig de Grácia, ou da Plaza Sant Jaume é um roubo, evite! Eu amo a Plaza central onde fica a catedral de Barcelona que é estilo gótico como o bairro, que tem horários de entradas gratuitas e é de tirar o fôlego. E sempre tem alguma coisa rolando por ali, nem que sejam artistas de rua tocando jazz.

Aqui um vermuth antes do almoço do domingo faz ficar pensando melhor, e custa de 1.7 a 3 euros


O lance da desglamourização eu ainda não consigo elaborar claramente, então vou simplifica-lo com dicas para quem quiser morar fora: vá com um propósito pré definido, seja ele um curso, um trabalho, um voluntariado, tenha algum ponto de partida. Viemos apenas com o passaporte do meu marido, e o que parecia fácil por ser esposa de espanhol, me deixou por seis meses praticamente no ostracismo, eu realmente tive que lutar muito contra uma depressão por não ter papel, não ter um propósito, então não adianta ter o documento e algum dinheiro, minha opinião, venha com um propósito, tenha um projeto que te mantenha próximo de quem você é, que seja fazer entrevistas com os gringos que vivem na cidade, porque é muito fácil se perder sendo imigrante. 

¿Me explico?

Aufwiedersehen!!

*Cita é um dos termos mais usados em espanhol, é literalmente um horário, um agendamento, mas pode ser usado também para "encontro", horário no médico, enfim, tudo que se refere a agendamento;

*2 Fascite plantar é uma inflamação na fascia que é um tecido que fica na base da musculatura do pé, que dá uma dor excruciante principalmente no ser humano que sofre disso ao acordar, e que se deve ao uso incorreto de sapatos, os flats são os maiores vilões, e também sobre peso não ajuda, muitas grávidas sofrem disso. Para curar é só a base de fisioterapia, muita massagem com uma bolinha tipo de tênis, todas as horas, compressa de gelo e reza braba. Pra evitar POR FAVORZINHO não usem sapatos planos para caminhar!!!!!! Não cometam o mesmo erro que eu! Saltos médio quadrados são ótimos para os pézinhos, além de tênis, claro!

*3 Empadronamento é o ato de uma pessoa que tenha um imóvel em Barcelona em seu nome, pode ser alugado, assinar um documento como que se "responsabilizando" por você na cidade, é mais um convite de entrada mesmo, e ele serve para dar entrada em qualquer documento oficial.