E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Cuidado com o que você deseja

Quando escrevemos um roteiro de filme ou série existe uma premissa na construção de personagens, que é entender o que ele ou ela desejam, mas também saber em contrapartida qual é o melhor caminho no arco narrativo dele ou dela, ou o que vai fazer com que esses personagens realmente sofram uma transformação. E uma escolha entre o querer, o que motiva esse personagem, e o precisar. Quais os conflitos? Isso não deixa de valer um pouco para nós enquanto seres humanos reais vivendo nossas vidinhas. Pelo menos quero usar um pouco essa metáfora por enquanto porque me deixa mais plena enquanto vivo os meus próprios conflitos, pensando que ele estão agregando valor ao meu arco narrativo.

Temos no mínimo duas linhas que dividem o que queremos e o que precisamos fazer. Colocando de uma forma bem simplista, alguns diriam que nossa alma ou nosso inconsciente buscam algo, enquanto o ego ou o superego apontam para um caminho mais tangível, normalmente aquele formado por uma conjuntura de valores, aprendizados e expectativas acumulados durante uma vida em sociedade. Há quem diga: siga sem dúvidas a sua alma, ou aqueles e aquelas que prefiram contar com a segurança de seguir objetivamente o ego, mas na maioria das vezes não existem formas prontas de diferenciar os pedidos de um ou de outro.

Na infância me lembro de ter falado com uma grande sabedoria que não queria nunca deixar de ser criança, e menstruar foi uma das minhas maiores decepções. Naquela época o ego estava incipiente, e a magia da criança funcionando como a magia da poesia, na improvisação, na linguagem concreta. Mas eu fui crescendo com um caráter muito sereno, brincalhão, e completamente avesso a conflitos. Ao crescer, penso que meu esforço foi seguir a linha traçada pelo ego, pelo que é considerado como certo na sociedade, esse caminho que sempre me pareceu mais seguro. Mas então eu casei e me mudei de São Paulo para Barcelona, a agora faz dois meses e meio que cato os restos mortais de uma couraça que não sabia carregar até então. Minha alma aproveitou meu momento vulnerável e entrou com tudo no meio do caminho, como se fosse uma segunda pessoa dentro mim.

Como os cookies que o nosso computador acumula, que são como "sujeiras" deixadas pelos downloads que fazemos ao acessar sites diversos e acabam deixando toda a máquina mais lenta, com as informações que colhemos diariamente sem perceber, se não trabalharmos na limpeza desses cookies, que são também as sensações e traumas vividos, tudo isso tende a se acumular no lugar mais fundo do nosso inconsciente que funciona como uma lixeira que por ser finita, em dado momento não suporta mais a quantidade de cookies e os catapulta para fora da nossa cabeça, transformados muitas vezes em sensações psicossomáticas.

Eu já morei fora do país, e apesar de ter talvez ignorado o pressuposto de que isso havia acontecido há dez anos, além de ter sido vivido por uma pessoa bem diferente, estava segura de que sentiria novamente aquela sensação de pertencimento vivido justamente no momento em que eu deixava tudo para trás, e me pegava sozinha em outro continente. Eu tinha certeza de que todo o caminho de preparação e despedidas antes de chegar até aqui seriam a parte mais difícil dessa mudança, mas não imaginava que logo que chegasse em Barcelona eu me encontraria comigo mesma, estrangeira e sem as minhas verdade tão confortáveis, conquistadas e pré definidas.

A burocracia aqui está em colapso pelo grande número de pessoas buscando oficializar a papelada, e por esse motivo, mesmo com uma oferta de trabalho desde julho, eu só conseguirei por enquanto ter os meus papéis em dezembro, talvez janeiro de 2019. Não me lembro mais como é ficar sem trabalhar. Aqui não sou produtora, não sou RP, nem a amiga, nem a filha, nem a irmã. Aqui, por incrível que pareça, meu reconhecimento está no meu casamento. Sou casada com um espanhol, e por isso posso ficar, mas trabalhar ainda não. O motivo da minha raiva, que agora meio que se transforma em um riso cansado e totalmente irônico, é que venho lutando pela minha identidade, meu ego tão precioso, minha marca, mas quanto mais tento sair dessa inércia identitária, mas fundo o universo me empurra para focar na minha alma, longe das pré disposições de um trabalho formal.

Fora a burocracia, eu já estava sentindo algumas dores na sola do pé antes de vir pra cá, mas logo que saí do aeroporto com minhas malas senti o peso dessa mudança. A dor era resultado de um conjunto de escolhas, mas hoje eu sei que ela vinha do arranque das minhas raízes, e ainda as sinto sairem de mim aos poucos, dois meses e meio depois. Eu tenho sentido muita raiva por isso tudo, e no dia do eclipse lunar de agosto, em um dos meus tantos pedidos de socorro (peçam socorro, tá tudo bem!), minha amiga e guru particular me enviou uma meditação para conversar com a minha criança interior. E então, enquanto acompanhava a voz suave da mulher que dirigia a meditação, de volta para a casa da minha infância, lá estava eu mesma em uma idade não muito reconhecível, entre os 6 e 9 anos. Ela brincava sozinha e quando me viu chegando segurou minha mão. Na meditação o pedido que se faz é para que a adulta afague a raiva da criança interior, mas nesse caso foi a criança que me abraçou. Ela me disse pra seguir chorando, que eu precisava desabafar porque ela não queria e nunca quis dar trabalho, e que o que eu estava vivendo era o nosso momento.



Então aos poucos, quando a fumaça na minha cabeça se dissipa, me percebo em Barcelona, como havia sonhado, ouvindo outras línguas, conhecendo outros costumes, sentindo outros cheiros. E nesses pequenos momentos eu me lembro que eu quis. Tudo isso. Se tem sido bom? Não, tem sido assustador.

Aufwiedersehen!!