E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

sábado, 31 de dezembro de 2022

E lá se vai 2022

Deixa eu ver, a última vez que estive por aqui foi em junho, o que pode parecer pouco na cronologia adulta mas que em tempos de bebê são séculos! Em junho meu filho tinha três meses e acabava de aprender a virar, o que nos causou dores de cabeça por passar de um ser praticamente inanimado para um em ação. Sem contar quando ele caiu da nossa cama a despeito dos avisos do pediatra que sempre dizia para nunca deixa-lo na cama, e que resultou em um galo exposto em sua linda testa sempre nos recordando do fato. Na época até fiquei com medo de ser delatada para o conselho tutelar por ter deixado meu filho cair da cama, o que na verdade foi sob os cuidados do pai, eu mesma o deixaria cair uma outra vez dois meses depois de forma completamente idiota enquanto pegava uma fralda para troca-lo. Coisas que acontecem, pode-se dizer. É esperado! Mas mãe tem aquela coisa chata de sentir o coração em carne viva. Quando digo generalizando a palavra "mãe", quero deixar bem claro que me refiro a mim mesma em minhas idiossincrasias. Essa metáfora do coração como o centro dos nossos afetos faz muito sentido, porque o aperto que vem da queda de um filho pequeno da cama enquanto chora até ficar vermelho, justo o meu menino que nem chora direito, é muito bem e literalmente localizado no centro do peito. E então, venho tentando sobreviver desde março a este grande clichê que é quase morrer de amores e de medo por meu filho. Mas nem só de más notícias vive 2022, apesar das tantas perdas célebres, este ano trouxe esperança (brilha estrelinha!), e ser mãe tem dessas também. Minha vida ganhou perspectiva, de repente as coisas que sempre foram um tanto quanto abstratas, e quando digo coisas me refiro a planos do futuro, estudos, carreira, amor, todas estas coisas que aprendemos com a indústria cultural e a própria sociedade, ganham consistência. É simples, você precisa pensar em como oferecer o melhor para esta pequena criatura que vive nos seus braços, cujo relevo corporal praticamente se encaixa ao canto do seu corpo enquanto você anda pela casa catando pelo da cachorra, brinquedos ou arrumando a cama. Claro que agora ele engatinha profissionalmente, desde os seis meses e parece cada vez melhor nesta arte, dando pequenos saltos e depois engatando a quinta em velocidade surpreendente. Agora o menino escala mesas, cadeirinhas, tudo que estiver ao alcance dos seus 70 e tanto centímetros. E essa parte é chata, vamos ser bem honestos, estar sempre à espreita dos perigos em torno do nenê é cansativo, o tempo físico simplesmente para enquanto seu corpo de mãe madura 35+ padece. É um tal de agacha e fala "não" sem fim. Dizem que quando começa a caminhar piora, mas às vezes queremos apenas um desafio diferente para mudar um pouco os ares. Jurava que o pequeno caminharia ainda este ano, mas vai ficar pra 2023. 

Aquele momento maravilhoso. E sim, ele segue na cama, desculpe-nos Dr. Carlos!


Eu tenho levado para passear uma revista que comprei com um artigo especial sobre o Dr. Donald Winnicott que já foi pra Juqueí, São Paulo, e muitos lugares de Araras. Pra quem não conhece, o Winnicott foi um pediatra e psicanalista inglês responsável pelo termo "mãe suficientemente boa", que é um termo tão maravilhoso e acurado que dispensa explicações. Ontem meu irmão comentou como a psicanálise tende a nos aproximar ou nos relembrar de nossa origem animal. Minha cunhada, psicóloga e eu, uma profissional diversa de humanas muito interessada no tema, ficamos meio sem resposta, mas acho que faz sentido sua linha de raciocínio. De maneira didática e muito empática, o Dr. Winnicott nos apresenta um mundo infantil mais ou menos sob o ponto de vista biológico. No sentido de que mães são mamíferos com seus filhotes que são resultado de milhares de anos de evolução, e também sobre como guardamos dentro de nós mesmas os segredos para oferecer tudo que a nossa cria precisa. Eu que me considero uma pessoa muito resolutiva e assertiva, me vejo às voltas com a insegurança de não saber o que fazer com a rotina do meu filho. A tal da rotina que as coaches de amamentação/sono/introdução alimentar/peido, e tudo que o Instagram oferece vivem repetindo como a coisa mais importante do mundo. E que a deusa abençoe essas profissionais, em sua grande maioria mães que encontraram sua vocação entre um parto e outro, e que seguem ajudando outras mães. Mas algumas vezes o excesso de informação atrapalha muito, gera ansiedade e eu tento estipular um ritmo artificial em cima de algo que eu esqueço já estar funcionando na dinâmica que foi criada em nossa casa. Temos o pai dele que tem o seu jeito matinal rabugento próprio, e que até tem acordado mais sorridente graças ao pimpolho. Temos uma cachorra de 25 kgs que solta pelos que formam grandes bolotas brancas que servem de brinquedo ou até mesmo um possível alimento para o nenê enquanto tropeça neles no chão. A psicanálise talvez não somente nos lembre de nossa origem animalesca, mas esteja aí para apontar como sempre somos mais de uma coisa, e como o nosso ego é formado a partir da construção social que entra em choque com a criança que é puro inconsciente, inconsequente e livre. É necessário deixa-la assim, o máximo de tempo possível porque como diria Rousseau: O homem nasce bom, a sociedade que o corrompe".


 A pobi da revista do Winnicott


terça-feira, 21 de junho de 2022

Mãe

Eu sempre amei dormir e acho que herdei isto que eu considero um dom que herdei da minha mãe ou apenas da convivência com ela e o prazer daquela sonequinha depois do almoço e do ficar mais tempo na cama aos sábados.  Há pouco, antes de editar este texto que tinha escrito para o Dia das Mães, estava deitada com meu pequeno bebê enquanto ele mamava para tentarmos embarcar em uma soneca compartilhada. Ele dormiu, eu fechei os olhos, mas em minha cabeça um turbilhão de coisas que eu queria estar fazendo naquela pausa do sono não me deixavam dormir. E despertei, para me sentar em frente ao computador e tentar participar do fórum online da faculdade de filosofia que eu tento perseguir a trancos e barrancos, mas aí me deu vontade mesmo de escrever um pouco. Ser mãe pra mim é nadar contra a corrente da presença deste amor descoberto - que é mesmo tudo de lindo e gigante que dizem - para encontrar o tempo para se lembrar de quem eu sou. Tudo isso resume bem o puerpério, que muitos dizem durar 40, 60 dias, e eu aqui passando do nonagésimo sinto estar no auge dele sem previsão de fim. Hoje eu fiz uma lasanha de abobrinha, no capricho, e parece que quase toquei na calda daquela felicidade anterior, tão despropositada e leve. Quando estamos vivendo por um bebê fica difícil perder tempo quando temos a possibilidade de nos visitar. Então eu escrevo, cozinho, estudo filosofia, brinco bastante com a minha cachorra. 

Na construção social a formação de mãe vem logo cedo para a menina, desde a bonequinha que deve ser cuidada, a menina também aprende como ser amável, como olhar para os outros antes de si mesma. E por esse motivo não temos como mérito o talento para "maternar", mas sim como algo construído durante toda a nossa vida, antes de qualquer formação profissional, o trabalho de mãe nos é imposto. Quero dizer que não tinha que existir mérito em ser mãe, uma vez que sua atuação/existência deveria ser reconhecida como qualquer outra, uma parte da sociedade, mas no sistema patriarcal tudo recai sobre essa figura que exerce os mais variados trabalhos, todos não remunerados, se faz necessária a santificação da mãe, e isso é um problema.

Não quero santificar a mãe porque o lugar dela é ao lado de todos, de carne e osso, com direito a todos os erros. Somente no lugar do erro e da humanidade é que podemos lograr empatia. A santa está acima de tudo. Ela até mesmo engravida e se mantém virgem. Eu mesma engravidei, nada virgem, aos 36 anos. Tive o privilégio e a possibilidade de viver a vida que eu quis até chegar neste lugar por escolha. E foram dez meses levando meu filho na barriga, com todo o enjoo, calor, e azia provenientes deste experimento. Pra mim tratava-se disso, um experimento, uma nova aventura que cabia em minha vida, um próximo passo interessante tal qual a escolha de morar sozinha em outro país.

Mas a figura da gestante iluminada vem acompanhada de elogios, de como estava "linda", "reluzente", "forte". E até então eu não sabia explicar muito bem por que aqueles elogios me incomodavam tanto, para além da tal romantização da gravidez que eu sempre insistia em dizer que era muito desagradável, pelo menos para mim. As pessoas pareciam não me ouvir para além da divindade que eu representava. "Você ainda vai sentir falta desta barriga." Eu sabia que não, eu até agora depois de três meses ainda comemoro o fim do barrigão. Veja bem como é curioso, ao mesmo tempo em que era forte e poderosa, quando decidia tomar um gole de vinho era julgada e recriminada pela escolha que agora não era somente minha, mas para o meu filho. Ora, vamos chegar em um consenso, por que sou forte e poderosa, mas não posso tomar uma decisão referente ao meu corpo? A cilada da santificação da mãe é que ela ao mesmo tempo infantiliza a mulher deixando-a em um lugar terrível de grande responsabilidade, ao mesmo tempo em que não a chancela para tomar suas escolhas individuais. Vide as últimas semanas horrendas de retrocesso ao direito ao aborto legal nos EUA, sem contar o caso de estupro da atriz Klara Castanho, escancarado pelos abutres das fofocas de famosos sem nenhum pudor e violentando mais uma vez a vítima. 

Deve ser por isso que eu amo tanto a Elena Ferrante, porque no momento em que ela cria personagens femininas não somente fortes, como também extremamente falhas e muitas vezes antipáticas, ela nos lembra da humanidade das mulheres, e de certa forma retira um pouco do fardo do feminismo que se estabeleceu recentemente no capitalismo graças à Internet. O patriarcalismo é tão sagaz, que consegue subverter até mesmo a noção de empoderamento feminino para uma nova sobrecarga de responsabilidade sob a mulher, para que seja bem-sucedida, amável, magra e uma grande mãe que sempre tem paciência com os filhos.

Quero permissão para alguns dias ser péssima, desagradável e antissocial, tanto quanto qualquer pai tem permissão de ser. Não adianta dar um beijo e um presentão para a sua mãe antes dela pedir licença pra lavar toda a louça sozinha, ou se você há séculos não pergunta como ela está, o que busca da vida e se ainda se lembra dos sonhos profissionais. É muito difícil elogiar uma mãe sem depreciar outra, precisamos enxergar as mães em sua individualidade, em como eram antes do filho. A sociedade precisa voltar a a entender que as crianças são o nosso investimento futuro e, portanto, responsabilidade de todos. A licença paternidade ainda tem cinco dias úteis no Brasil. Aqui em casa graças ao trabalho flexível do meu marido pudemos compartilhar o cuidado com o nosso amado recém-nascido, que está tendo a sorte de ter o colo do pai tão importante para a construção dessa relação futura e de sua masculinidade. É triste que os homens não possam ter esse tempo dedicado por lei, é injusto com as mulheres e contraproducente para todos como sociedade. 



 

sexta-feira, 25 de março de 2022

Relato de um parto

Não é à toa que usamos o termo "parto" pra algo que gera muito trabalho para ser feito. O meu começou no momento em que soube que estava grávida. No meu caso em Julho de 2021 em um contexto de primeiras vacinações da covid 19, como sabemos, a pandemia que assolou toda a população mundial em Março de 2020. Ainda morávamos em Barcelona, meu marido, o Carlinhos e eu, quando a pandemia estourou e tivemos que ficar totalmente isolados em casa, no lockdown de lá somente uma pessoa da família podia sair para o mercado por exemplo, senão levava multa. Preocupados com o rumo das coisas e cansados de saudade resolvemos voltar para o Brasil em setembro daquele ano, depois de pouco mais de dois vivendo ali. Decidimos não voltar para São Paulo, onde nos conhecemos e morávamos originalmente, mas agora para a minha cidade natal, Araras, no interior. O Carlinhos, paulistano, sempre flertava com a ideia de morar em uma cidade pequena, já eu jurava de pé junto que não voltaria jamais depois de ficar fora mais de quinze anos. Era a primeira de muitas mudanças dogmáticas internas que eu atravessaria nesse percurso que começou lá na Catalunya quando resolvi tirar o DIU e aguardar um nenê a algum momento. O nenê acabou sendo concebido só em Junho, quase um ano depois e com algum atraso acreditamos que por conta do meu diagnóstico de hipotireoidismo, e então exatamente no dia da tão sonhada vacina da covid 19, brasileiríssima do instituto Butantan, eu também recebi a confirmação da gravidez através do exame feito no laboratório. No whatsapp a moça me respondia à pergunta sobre o resultado com um "positivo", enquanto eu esperava na fila de carros para vacinar. Minha reação foi um "eita" desengonçado, e dali pra frente seria um "eita atrás de vish".

41 semanas

Poucos sabem disso, mas a gravidez humana não dura normalmente nove, mas sim dez meses. São as fatídicas 40 semanas que prescrevem a DPP, ou data provável do parto, no nosso caso dia 13/03/2022. Convenci o Carlinhos para não sabermos o sexo do nenê até o nascimento, queria aproveitar mais essa experiência psico-antropológica de não associar a espera dessa criança com a socialização de um sexo, pra tentar pensar na criança como um ser humano, uma página em branco. E foi assim até o fim. Inventamos alguns nomes fictícios para nos referimos ao rebento(a): Bolota, Neydaozitus, Cachorrão, era divertido.


Eu parei de trabalhar e entrei em licença depois da sexta de carnaval, dia 28/02. Tinha quase certeza que o nenê viria lá pro início de março, um(a) pisciano(a) meio cabeça nas nuvens, o que me daria duas semanas de folga e descanso antes de todo o tsunami da maternidade, mas o Raul não queria sair tão cedo e escolheu nascer ariano intenso no dia 22/03. 


Enquanto os dias iam passando, principalmente a data da DPP, eu fui ficando, não diria ansiosa porque eu sei bem o que é ser ansiosa, mas impaciente com o tempo e com a rotina da gravidez, principalmente com o calor insuportável que fazia e que foi dar uma folga exatamente no dia 21, segunda-feira quando começou o trabalho de parto. No domingo tinha decidido, além dos diversos métodos de indução natural do parto, como o chá da Naoli (uma bomba caliente mexicana feita com canela, gengibre, chocolate e pimenta), sexo, acunputura, e capsulas de prímula. No final das contas decidimos por algo um pouco mais "físico", o descolamento da membrana, que se caracteriza por descolar a membrana da bolsa embrionária, do colo do útero para ajudar no preparo do colo a futura passagem do feto. Eu poderia fazê-lo com a obstetra ou com a minha doula que também é enfermeira obstetra, mas optei por fazer em casa mesmo, com a Júlia, doula/enfermeira, no domingo. 


A primeira vacina já grávida

Jantamos, Carlinhos e eu com meus pais, meu irmão e cunhada em uma pizzaria no domingo, e na segunda às 8h percebi com uma animação grande a sensação da primeira contração de treinamento ou pródromo. Acredito que a animação se devia à ocitocina, a grande companheira das gestantes, mas também à quebra da rotina de grávida avançada que já me cansava muito. Mas a alegria passou rapidinho, por volta das 14h, quando eu senti a primeira contração que lembro de ter descrito como "mortífera" no grupo das doulas, e que me deu vontade de vomitar o café da manhã e almoço reforçados que eu tinha preparado para estar forte durante o dia até a hora do expulsivo, que é o momento final do parto quando literalmente o útero se contrai para "jogar o bebê pra fora".


Por volta das 16h, a Marina, outra doula e também enfermeira obstetra do coletivo*, chegou em casa. Eu tinha tomado um banho quente depois da contração mortífera e já estava levando esse negócio todo de trabalho de parto muito a sério, sem risadinha. Ela fez massagens deliciosas no meu corpo todo com um óleo essencial de sálvia e  ouviu o coração do bebê. Como eu já estava mais calma com a massagem e tendo contrações mais espaçadas ela foi embora dizendo que poderia voltar a qualquer momento mas que achava que o parto se aceleraria na madrugada ou no dia seguinte cedo.


Exatamente às 20h meu marido mandou a seguinte mensagem no grupo das doulas: "Meninas boa noite. A dor forte voltou e a Van não tá conseguindo descansar. Ela tenta deitar mas a dor vem muito forte. E mudando de posição,  mesmo sentada também tá complicado".


Pouco menos de uma hora depois a Júlia, também grávida de quase 32 semanas, chegou em casa. Neste momento eu já não era de muitos amigos, as contrações vinham muito doloridas e nada parecidas umas com as outras. Ora eu sentia uma dor enorme na barriga, ora na lombar e quadris. Lembro de ficar calculando como desceria as escadas de casa até a garagem com essa dor paralisadora, e muito menos o caminho de casa até o hospital que duraria menos de 10 minutos naquele horário e em Araras. Quando fui ao banheiro já vi que o tampão, uma espécie de gosma com sangue e muco que protege o colo uterino, tinha saído. Nesta altura já não tinha muito espaço de tempo ou folga entre uma contração e outra, e não é possível fazer outra coisa senão sentir dor quando a contração vem. Então, depois de dizer que queria ir pro hospital e enquanto o Carlinhos pegava minha mala e a do bebê, arrumadas e aguardando há três semanas, corri escada abaixo até o carro na folga de uma contração e esperei por eles. A ida ao hospital foi difícil com as dores, pedia toda hora pra ele dirigir bem devagar, tudo piorava salvo pelo ventinho ameno que vinha do mundo lá fora, em outra dimensão externa àquela dor que eu não sabia quando e como iria parar. Eu sentia medo e muito respeito, mas pensando em retrospecto esse sentimento de respeito com medo e uma sensação de humildade foram constantes desde o início da gestação, há quase um ano lá da primeira vacina de três do covid.


Não vou saber precisar muitos os horário porque meu mundo estava centralizado em sobreviver às dores e tentar respirar. Mas chegamos ao hospital por volta das 22:30h e enquanto o Carlinhos fazia a pré internação na emergência, tal qual um filme de comédia romântica, minha bolsa estourou no chão espirrando uma água transparente e meio rosa pelo chão do hospital e minhas pernas. Fomos encaminhados para a enfermaria com uma divisória simples com mais duas pessoas, umas delas lembro que tinha um homem sem uma das pernas. Eu seguia nas contrações, absurdamente dolorosas, enquanto aguardávamos a liberação do convênio para ir ao quarto. Nesse meio tempo a enfermeira de plantão fez o exame de toque para sentir a dilatação e constatou que estava entre 4 e 5cm, que eu achei bem poucos e desanimadores perto da dor que eu estava sentindo, mas logo fui animada pela Julia que disse que o marco dos 5 é bem difícil mesmo. Precisaríamos de 10 para o bebê nascer, ou seja, apesar de estar há menos de cinco horas sentindo contrações fortes, já me sentia bem cansada para o que ainda teria por vir e que de novo, não sabia quanto tempo iria durar.


Finalmente fomos liberados para o quarto, e a Júlia e o Carlinhos entraram comigo. No quarto eu tinha um banheiro só meu, com chuveiro, um privilégio enorme e tudo indicaria que eu evoluiria o parto por ali mesmo, sem precisar me movimentar até o centro cirúrgico como de praxe. Nesse momento eu acho que entrei no chuveiro deixando a água quente cair na barriga, o que ajudou um pouco, mas as dores e o cansaço eram imensos e eu já comentava isso com a Júlia. Eu sempre disse que não saberia que tipo de parturiente eu seria, muito menos mãe. Encarei esse desafio todo como um divisor de águas, um batismo de sangue que passaria com a confiança no processo e no que eu havia construído como indivíduo até aquele momento. O engraçado é que eu passei pelo trabalho de parto muito como eu sou. Realista, objetiva e introspectiva. Suportava as dores da contração de olhos fechados sempre tentando respirar e soltando o corpo, lembrando das aulas de yoga e tentando deixar o cérebro e a razão desligados. Verbalizava vez ou outra para a Júlia como estava cansada e que já não aguentava mais. Queria buscar alguma luz no fim do túnel, que ela me desse uma ideia, mas ela seguia repetindo que eu já tinha chegado até aquele momento, que estávamos no fim. Queria entender como funcionaria uma possível analgesia, tão atraente frente às contrações que mal me davam folga naquele momento, mas a Júlia me disse que ainda teriam que contatar a anestesista para deixá-la preparada para vir até o hospital ainda, e que teríamos que ter a dilatação de 10 cm antes de tudo para a minha obstetra, a Dra. Marianna aprovar. A enfermeira de plantão e a Júlia ficavam em contato com a Dra. durante todo o tempo pra ela saber quando vir pra entregar o bebê quando estivesse pronto, mas para isso a enfermeira de plantão teria que fazer outro exame de toque antes, o que me dava arrepios porque ele possivelmente acarretaria, como foi horas antes, mais um ciclo de de contrações absurdas em um mundo de contrações que eu já vivia.


Nesse momento acho que era por volta de meia noite e meia quando tomei outro banho, eu já chorava de desespero e cansaço, só queria conseguir deitar e dormir duas horas, mas era impossível deitar. Esqueci de comentar que eu tinha um acesso com Buscopan na veia que parecia uma piada para lidar com a dor daquelas contrações. Em dado momento, depois do banho, meio desfalecida e sentada na privada do banheiro de onde eu não saia mais, a próxima contração despertou um grito potente de uma voz que não era minha, e então a Júlia percebeu que era um sinal do expulsivo. As contrações agora vinham com mais espaço, como que me dando um tempinho de descanso pro momento final e mais dolorido. Entre uma e outra eu conseguia cochilar e praticamente sonhava, ia pra outra dimensão, mesmo que por minutos, estava exaurida, e ficava repetindo como não aguentava mais, porque externamente eu parecia plena, normalmente quieta e de olhos fechados. Então a Júlia ofereceu de fazer o toque pra ver a dilatação, e foi quando ela me anunciou os tão sonhados 10 e que já podia sentir a cabeça do bebê, seu cabelinho, ela disse. Foi a primeira vez que eu sorri em horas e me lembrei do livro que a minha amiga Fefa tinha emprestado logo no início da gestação, o Parto Ativo. No livro a autora explica sobre a importância do movimento durante o parto,  porque a descida do bebê não é reta, mas sim em giros, como um parafuso. Uma pequena digressão aqui a título de curiosidade, quando o ser humano deixou de ser quadrúpede para se apoiar em duas pernas, toda a estrutura óssea precisou se adaptar à esta anatomia e por isso também as gestações passaram a ser mais curtas, para que o filhote humano pudesse passar pelo canal mais estreito e assim terminar a gestação externa fora do corpo da mãe. Por isso os bebês humanos são menos evoluídos mecanicamente que os outros mamíferos quadrúpedes, como por exemplo o bezerro que já consegue andar pouco tempo depois do nascimento, porque nós precisamos terminar a gestação no mundo externo.


Minha licença anterior ao nascimento durou três semanas de muito descanso


Voltando para o expulsivo do meu parto e para a lembrança do livro, pensei na gravidade. Era difícil sair da posição que estava sentada no vaso e seria possível esperar o bebê nascer ali mesmo a tempo de segurar sua cabecinha sem cair na privada, mas achei que poderia ajudar no processo de descida estar em pé, e então fiquei apoiada como nossos ancestrais, com quatro apoios enquanto aceitava as contrações que agora já vinham mais frequência graças a ajuda da ocitocina que a obstetra tinha pedido para colocar no acesso e ajudar no processo de expulsão. Essas contrações finais eram sentidas como pulsações que reverberam para o corpo todo e pra mim pelo menos era impossível não gritar. É como se um soluço direcionasse uma câimbra de corpo generalizada, que só de lembrar sinto um calafrio. A pressão da força que o corpo mandava fazer era muito forte no ânus e na vagina, e a Júlia só me dizia que faltava muito pouco pra cabeça do bebê aparecer. Em algum momento as enfermeiras nos pediram para sair do banheiro para irmos ao centro cirúrgico e eu respondi que seria impossível e inadmissível cogitar deitar em uma cama naquele momento. A Júlia já estava preparada para pegar o nenê nascendo, o Carlinhos estava junto todo o momento acompanhando a minha luta, e então a Dra. Marianna chegou, sentou meio que no chão junto com a doula grávida, e nas próximas contrações eu já sentiria a coroa de fogo, que é a quando a cabeça do nenê "coroa" na vagina e todo mundo fica muito animado menos a mãe que sente uma dor que ela não sabia que era AINDA possível sentir depois de horas de dor alucinante. E então dentro de mim, exausta, e já sem força nenhuma, me concentrei em respirar e confiar na gravidade, respirei fundo junto com o que já parecia uma torcida de final de Copa de mundo me dando força em uníssono naquele banheiro escuro na madrugada, e pude sentir sua cabeça sair para logo em sequência a criança escorregar com seu corpo inteiro para as mãos da médica. Me ajoelhei e respirei, minhas pernas tremiam, olhei para aquele menino que vivia na minha barriga há quase um ano, nos conhecemos. Olhei para o meu marido, aturdido com uma tesoura nas mãos para cortar o cordão umbilical, não sem esperar alguns minutos antes da pulsação da bolsa parar. E então me passaram o Raul, que veio pro colo, onde eu o coloquei colado na pele e pude me apresentar a ele enquanto dizia também para mim mesma que era, a partir daquele momento, mãe.

 

O grande encontro

 *A @equipedoulamar é uma equipe multiprofissional de assistência a gestação, parto e puerpério, contando com uma equipe de Doulas, Enfermeiras e Fisioterapeuta.
Seguir: @nosdofeminino @flamamagenta @gestarmais.fisioterapiapelvica @erikarissati.doula @fernandaxavier


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Gestar o adulto

Uma vez, ainda quando eu morava na Alemanha, assisti ao filme do Benjamin Button em Berlim na época de Berlinale em 2009. Tempos maravilhosos! Lembro especialmente da cena em que a personagem de Cate Blanchett conta para o protagonista Brad Pitt que estava Schwanger. Também fico pensando no embarazada do espanhol, que palavra mais engraçada. Aqui no Brasil estou grávida mesmo, algumas vezes gravidinha. 


Completo trinta e duas semanas no domingo, oito meses neste processo de crescimento, transformação e incômodo. As vezes fico me perguntando se existe algum tipo de performance que devo seguir. Como ouvir pela primeira vez os primeiros batimentos do meu filho ou filha. É esperado que a gente chore? Se emocione pelo milagre da vida? Senti o mesmo embaraço interno quando meu marido e eu decidimos nos casar. Esses grandes marcos na vida da mulher me deixam com uma sensação agridoce, como se eu fosse previsível. 


Nunca me dei muito bem com esta identidade feminina, talvez seja por isso que eu tenha tanto interesse na questão de gênero mesmo me identificando como mulher cis heterosexual. Estou casada e grávida, bem normativa. Mas preferi não saber o sexo do bebê, o que gera muito assunto com todas as pessoas que como sociedade participam de uma gravidez, primeiro a supresa por não querer saber o sexo, depois o palpite do que possa ser o sexo. Rola todo tipo de diagnóstico, seja o formato da barriga, o aspecto da minha pele ou a intuição da pessoa que quer saber. 


Eu do meu lado e depois de mais de meio ano vivendo sob esta circunstância sigo muito tranquila quanto a minha decisão, me fascina o exercício tão raro de pensar em um ser humano assexuado como alguns personagens fictícios da Ursula Leguin. Um bebê abstrato que cresce em minha barriga, sendo gerado com suas complexidades para chegar sem nenhuma expectativa de ornamentos. Mas, como podemos comprar presentes para um bebê sem sexo? Teremos que apelar para as cores neutras? O horror de usar amarelinho, bege, cinza, porque Deus nos livre um menino usar rosa ou uma menina usar azul! Talvez eu esteja me superestimando nesta escolha de não saber o sexo, passando um posicionamento político enquanto eu enquanto mulher tento extirpar a memória de ter sido uma menina. Os badulaques na cabeça, o brinquinho na orelha, os babados que minha avó costurava com tanto carinho para enfeitar sua primeira boneca depois de ter parido seis homens. Desde pequena me lembro de ficar fascinada com o mundo masculino talvez por ter tantos tios e observar a sua liberdade, principalmente as piadas escrachadas que eu fingia entender. Cresci com um tipo de humor diferente, um modo de agir fora do padrão, uma vontade de voar para longe e conquistar o mundo. Encarei alguns embates com a compulsória religião católica da família, se por um lado queria ser uma boa filha para minha mãe, meu coração e meu corpo pulsantes se encantavam com as excentricidades da vida livre e desempendida e o sexo. Tudo envolto em uma grande incoerência, uma incoerência que me leva de volta aos quase trinta anos, quando me vi solteira, como se não tivesse validade para um relacionamento, meio solta no contexto social. 


Ainda tenho dúvidas quanto ao meu talento para o casamento, muitas vezes sonho com a solitude e minha mente vez ou outra depois de uma briga me leva para um futuro alternativo em Nova Iorque. Mas agora eu sou uma quase mãe e os planos ficam para mais tarde, para depois da revolução. Na terapia, fui interpelada por não considerar meu bebê em um plano para o meu futuro, enquanto pensava mais em minha carreira e onde poderia estar com meu marido. Senti um certo julgamento até, mas a gravidez já me colocou em bons termos com a ideia de não planejamento, de não saber. 


Para além do sexo do bebê, não sei como vai nascer esta mãe em mim. Sinto que só me resta estar em paz com o imprevisto, pular de um penhasco coberto de neblina onde não se vê o que vai encontrar lá embaixo. A adrenalina sobe, a ansiedade e o nervosismo vêm, mas sei que o pulo é um bungee jump, tem uma corda elástica nas minhas costas, uma rede de apoio, a maturidade que uma mãe de trinta e seis carrega apesar do cansaço por não ter mais os vinte e poucos, ou menos, que minhas ancestrais tinham neste momento de suas vidas. Para a minha geração que vem optando por ter filhos depois dos trinta, ou quarenta, sinto que a gravidez é vista com mais solenidade. Estamos muito mais conscientes do que vamos perder ao invés de sonhar com a parte romântica de cuidar de um ser humano. Olhamos para nossos companheiros, quando são homens principalmente, com certo ceticismo. Calculamos para onde vão nossas carreiras, cuidamos do corpo, mas principalmente da mente. Lembrando que falo de um lugar branco e de grande privilégio de classe. 


O mundo está em colapso, talvez não faça muito sentido trazer mais gente, mas acredito que o ponto chave é entender que trazemos filhos ao mundo por motivos egoístas, pelo menos os filhos planejados como a(o) minha(meu). A criança não recebe a dádiva de vir ao mundo, ela não existe antes disso. A criança vem para preencher um espaço que adultos conscientes entendem como necessário para a vida deles. Foi assim comigo, a gestação veio como mais uma aventura, uma nova barreira que eu me propus a quebrar apesar de ser um ato tão corriqueiro e tradicional. É um passo grandioso que damos para alargar a nossa existência, o nenê não tem responsabilidade nenhuma com as nossas expectativas.  


Leda, personagem interpretada por Olivia Colman em A Filha Perdida, na genial adaptação com roteiro e direção de Maggie Gyllenhaal livro homônimo e meu romance preferido de Elena Ferrante