E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

sexta-feira, 25 de março de 2022

Relato de um parto

Não é à toa que usamos o termo "parto" pra algo que gera muito trabalho para ser feito. O meu começou no momento em que soube que estava grávida. No meu caso em Julho de 2021 em um contexto de primeiras vacinações da covid 19, como sabemos, a pandemia que assolou toda a população mundial em Março de 2020. Ainda morávamos em Barcelona, meu marido, o Carlinhos e eu, quando a pandemia estourou e tivemos que ficar totalmente isolados em casa, no lockdown de lá somente uma pessoa da família podia sair para o mercado por exemplo, senão levava multa. Preocupados com o rumo das coisas e cansados de saudade resolvemos voltar para o Brasil em setembro daquele ano, depois de pouco mais de dois vivendo ali. Decidimos não voltar para São Paulo, onde nos conhecemos e morávamos originalmente, mas agora para a minha cidade natal, Araras, no interior. O Carlinhos, paulistano, sempre flertava com a ideia de morar em uma cidade pequena, já eu jurava de pé junto que não voltaria jamais depois de ficar fora mais de quinze anos. Era a primeira de muitas mudanças dogmáticas internas que eu atravessaria nesse percurso que começou lá na Catalunya quando resolvi tirar o DIU e aguardar um nenê a algum momento. O nenê acabou sendo concebido só em Junho, quase um ano depois e com algum atraso acreditamos que por conta do meu diagnóstico de hipotireoidismo, e então exatamente no dia da tão sonhada vacina da covid 19, brasileiríssima do instituto Butantan, eu também recebi a confirmação da gravidez através do exame feito no laboratório. No whatsapp a moça me respondia à pergunta sobre o resultado com um "positivo", enquanto eu esperava na fila de carros para vacinar. Minha reação foi um "eita" desengonçado, e dali pra frente seria um "eita atrás de vish".

41 semanas

Poucos sabem disso, mas a gravidez humana não dura normalmente nove, mas sim dez meses. São as fatídicas 40 semanas que prescrevem a DPP, ou data provável do parto, no nosso caso dia 13/03/2022. Convenci o Carlinhos para não sabermos o sexo do nenê até o nascimento, queria aproveitar mais essa experiência psico-antropológica de não associar a espera dessa criança com a socialização de um sexo, pra tentar pensar na criança como um ser humano, uma página em branco. E foi assim até o fim. Inventamos alguns nomes fictícios para nos referimos ao rebento(a): Bolota, Neydaozitus, Cachorrão, era divertido.


Eu parei de trabalhar e entrei em licença depois da sexta de carnaval, dia 28/02. Tinha quase certeza que o nenê viria lá pro início de março, um(a) pisciano(a) meio cabeça nas nuvens, o que me daria duas semanas de folga e descanso antes de todo o tsunami da maternidade, mas o Raul não queria sair tão cedo e escolheu nascer ariano intenso no dia 22/03. 


Enquanto os dias iam passando, principalmente a data da DPP, eu fui ficando, não diria ansiosa porque eu sei bem o que é ser ansiosa, mas impaciente com o tempo e com a rotina da gravidez, principalmente com o calor insuportável que fazia e que foi dar uma folga exatamente no dia 21, segunda-feira quando começou o trabalho de parto. No domingo tinha decidido, além dos diversos métodos de indução natural do parto, como o chá da Naoli (uma bomba caliente mexicana feita com canela, gengibre, chocolate e pimenta), sexo, acunputura, e capsulas de prímula. No final das contas decidimos por algo um pouco mais "físico", o descolamento da membrana, que se caracteriza por descolar a membrana da bolsa embrionária, do colo do útero para ajudar no preparo do colo a futura passagem do feto. Eu poderia fazê-lo com a obstetra ou com a minha doula que também é enfermeira obstetra, mas optei por fazer em casa mesmo, com a Júlia, doula/enfermeira, no domingo. 


A primeira vacina já grávida

Jantamos, Carlinhos e eu com meus pais, meu irmão e cunhada em uma pizzaria no domingo, e na segunda às 8h percebi com uma animação grande a sensação da primeira contração de treinamento ou pródromo. Acredito que a animação se devia à ocitocina, a grande companheira das gestantes, mas também à quebra da rotina de grávida avançada que já me cansava muito. Mas a alegria passou rapidinho, por volta das 14h, quando eu senti a primeira contração que lembro de ter descrito como "mortífera" no grupo das doulas, e que me deu vontade de vomitar o café da manhã e almoço reforçados que eu tinha preparado para estar forte durante o dia até a hora do expulsivo, que é o momento final do parto quando literalmente o útero se contrai para "jogar o bebê pra fora".


Por volta das 16h, a Marina, outra doula e também enfermeira obstetra do coletivo*, chegou em casa. Eu tinha tomado um banho quente depois da contração mortífera e já estava levando esse negócio todo de trabalho de parto muito a sério, sem risadinha. Ela fez massagens deliciosas no meu corpo todo com um óleo essencial de sálvia e  ouviu o coração do bebê. Como eu já estava mais calma com a massagem e tendo contrações mais espaçadas ela foi embora dizendo que poderia voltar a qualquer momento mas que achava que o parto se aceleraria na madrugada ou no dia seguinte cedo.


Exatamente às 20h meu marido mandou a seguinte mensagem no grupo das doulas: "Meninas boa noite. A dor forte voltou e a Van não tá conseguindo descansar. Ela tenta deitar mas a dor vem muito forte. E mudando de posição,  mesmo sentada também tá complicado".


Pouco menos de uma hora depois a Júlia, também grávida de quase 32 semanas, chegou em casa. Neste momento eu já não era de muitos amigos, as contrações vinham muito doloridas e nada parecidas umas com as outras. Ora eu sentia uma dor enorme na barriga, ora na lombar e quadris. Lembro de ficar calculando como desceria as escadas de casa até a garagem com essa dor paralisadora, e muito menos o caminho de casa até o hospital que duraria menos de 10 minutos naquele horário e em Araras. Quando fui ao banheiro já vi que o tampão, uma espécie de gosma com sangue e muco que protege o colo uterino, tinha saído. Nesta altura já não tinha muito espaço de tempo ou folga entre uma contração e outra, e não é possível fazer outra coisa senão sentir dor quando a contração vem. Então, depois de dizer que queria ir pro hospital e enquanto o Carlinhos pegava minha mala e a do bebê, arrumadas e aguardando há três semanas, corri escada abaixo até o carro na folga de uma contração e esperei por eles. A ida ao hospital foi difícil com as dores, pedia toda hora pra ele dirigir bem devagar, tudo piorava salvo pelo ventinho ameno que vinha do mundo lá fora, em outra dimensão externa àquela dor que eu não sabia quando e como iria parar. Eu sentia medo e muito respeito, mas pensando em retrospecto esse sentimento de respeito com medo e uma sensação de humildade foram constantes desde o início da gestação, há quase um ano lá da primeira vacina de três do covid.


Não vou saber precisar muitos os horário porque meu mundo estava centralizado em sobreviver às dores e tentar respirar. Mas chegamos ao hospital por volta das 22:30h e enquanto o Carlinhos fazia a pré internação na emergência, tal qual um filme de comédia romântica, minha bolsa estourou no chão espirrando uma água transparente e meio rosa pelo chão do hospital e minhas pernas. Fomos encaminhados para a enfermaria com uma divisória simples com mais duas pessoas, umas delas lembro que tinha um homem sem uma das pernas. Eu seguia nas contrações, absurdamente dolorosas, enquanto aguardávamos a liberação do convênio para ir ao quarto. Nesse meio tempo a enfermeira de plantão fez o exame de toque para sentir a dilatação e constatou que estava entre 4 e 5cm, que eu achei bem poucos e desanimadores perto da dor que eu estava sentindo, mas logo fui animada pela Julia que disse que o marco dos 5 é bem difícil mesmo. Precisaríamos de 10 para o bebê nascer, ou seja, apesar de estar há menos de cinco horas sentindo contrações fortes, já me sentia bem cansada para o que ainda teria por vir e que de novo, não sabia quanto tempo iria durar.


Finalmente fomos liberados para o quarto, e a Júlia e o Carlinhos entraram comigo. No quarto eu tinha um banheiro só meu, com chuveiro, um privilégio enorme e tudo indicaria que eu evoluiria o parto por ali mesmo, sem precisar me movimentar até o centro cirúrgico como de praxe. Nesse momento eu acho que entrei no chuveiro deixando a água quente cair na barriga, o que ajudou um pouco, mas as dores e o cansaço eram imensos e eu já comentava isso com a Júlia. Eu sempre disse que não saberia que tipo de parturiente eu seria, muito menos mãe. Encarei esse desafio todo como um divisor de águas, um batismo de sangue que passaria com a confiança no processo e no que eu havia construído como indivíduo até aquele momento. O engraçado é que eu passei pelo trabalho de parto muito como eu sou. Realista, objetiva e introspectiva. Suportava as dores da contração de olhos fechados sempre tentando respirar e soltando o corpo, lembrando das aulas de yoga e tentando deixar o cérebro e a razão desligados. Verbalizava vez ou outra para a Júlia como estava cansada e que já não aguentava mais. Queria buscar alguma luz no fim do túnel, que ela me desse uma ideia, mas ela seguia repetindo que eu já tinha chegado até aquele momento, que estávamos no fim. Queria entender como funcionaria uma possível analgesia, tão atraente frente às contrações que mal me davam folga naquele momento, mas a Júlia me disse que ainda teriam que contatar a anestesista para deixá-la preparada para vir até o hospital ainda, e que teríamos que ter a dilatação de 10 cm antes de tudo para a minha obstetra, a Dra. Marianna aprovar. A enfermeira de plantão e a Júlia ficavam em contato com a Dra. durante todo o tempo pra ela saber quando vir pra entregar o bebê quando estivesse pronto, mas para isso a enfermeira de plantão teria que fazer outro exame de toque antes, o que me dava arrepios porque ele possivelmente acarretaria, como foi horas antes, mais um ciclo de de contrações absurdas em um mundo de contrações que eu já vivia.


Nesse momento acho que era por volta de meia noite e meia quando tomei outro banho, eu já chorava de desespero e cansaço, só queria conseguir deitar e dormir duas horas, mas era impossível deitar. Esqueci de comentar que eu tinha um acesso com Buscopan na veia que parecia uma piada para lidar com a dor daquelas contrações. Em dado momento, depois do banho, meio desfalecida e sentada na privada do banheiro de onde eu não saia mais, a próxima contração despertou um grito potente de uma voz que não era minha, e então a Júlia percebeu que era um sinal do expulsivo. As contrações agora vinham com mais espaço, como que me dando um tempinho de descanso pro momento final e mais dolorido. Entre uma e outra eu conseguia cochilar e praticamente sonhava, ia pra outra dimensão, mesmo que por minutos, estava exaurida, e ficava repetindo como não aguentava mais, porque externamente eu parecia plena, normalmente quieta e de olhos fechados. Então a Júlia ofereceu de fazer o toque pra ver a dilatação, e foi quando ela me anunciou os tão sonhados 10 e que já podia sentir a cabeça do bebê, seu cabelinho, ela disse. Foi a primeira vez que eu sorri em horas e me lembrei do livro que a minha amiga Fefa tinha emprestado logo no início da gestação, o Parto Ativo. No livro a autora explica sobre a importância do movimento durante o parto,  porque a descida do bebê não é reta, mas sim em giros, como um parafuso. Uma pequena digressão aqui a título de curiosidade, quando o ser humano deixou de ser quadrúpede para se apoiar em duas pernas, toda a estrutura óssea precisou se adaptar à esta anatomia e por isso também as gestações passaram a ser mais curtas, para que o filhote humano pudesse passar pelo canal mais estreito e assim terminar a gestação externa fora do corpo da mãe. Por isso os bebês humanos são menos evoluídos mecanicamente que os outros mamíferos quadrúpedes, como por exemplo o bezerro que já consegue andar pouco tempo depois do nascimento, porque nós precisamos terminar a gestação no mundo externo.


Minha licença anterior ao nascimento durou três semanas de muito descanso


Voltando para o expulsivo do meu parto e para a lembrança do livro, pensei na gravidade. Era difícil sair da posição que estava sentada no vaso e seria possível esperar o bebê nascer ali mesmo a tempo de segurar sua cabecinha sem cair na privada, mas achei que poderia ajudar no processo de descida estar em pé, e então fiquei apoiada como nossos ancestrais, com quatro apoios enquanto aceitava as contrações que agora já vinham mais frequência graças a ajuda da ocitocina que a obstetra tinha pedido para colocar no acesso e ajudar no processo de expulsão. Essas contrações finais eram sentidas como pulsações que reverberam para o corpo todo e pra mim pelo menos era impossível não gritar. É como se um soluço direcionasse uma câimbra de corpo generalizada, que só de lembrar sinto um calafrio. A pressão da força que o corpo mandava fazer era muito forte no ânus e na vagina, e a Júlia só me dizia que faltava muito pouco pra cabeça do bebê aparecer. Em algum momento as enfermeiras nos pediram para sair do banheiro para irmos ao centro cirúrgico e eu respondi que seria impossível e inadmissível cogitar deitar em uma cama naquele momento. A Júlia já estava preparada para pegar o nenê nascendo, o Carlinhos estava junto todo o momento acompanhando a minha luta, e então a Dra. Marianna chegou, sentou meio que no chão junto com a doula grávida, e nas próximas contrações eu já sentiria a coroa de fogo, que é a quando a cabeça do nenê "coroa" na vagina e todo mundo fica muito animado menos a mãe que sente uma dor que ela não sabia que era AINDA possível sentir depois de horas de dor alucinante. E então dentro de mim, exausta, e já sem força nenhuma, me concentrei em respirar e confiar na gravidade, respirei fundo junto com o que já parecia uma torcida de final de Copa de mundo me dando força em uníssono naquele banheiro escuro na madrugada, e pude sentir sua cabeça sair para logo em sequência a criança escorregar com seu corpo inteiro para as mãos da médica. Me ajoelhei e respirei, minhas pernas tremiam, olhei para aquele menino que vivia na minha barriga há quase um ano, nos conhecemos. Olhei para o meu marido, aturdido com uma tesoura nas mãos para cortar o cordão umbilical, não sem esperar alguns minutos antes da pulsação da bolsa parar. E então me passaram o Raul, que veio pro colo, onde eu o coloquei colado na pele e pude me apresentar a ele enquanto dizia também para mim mesma que era, a partir daquele momento, mãe.

 

O grande encontro

 *A @equipedoulamar é uma equipe multiprofissional de assistência a gestação, parto e puerpério, contando com uma equipe de Doulas, Enfermeiras e Fisioterapeuta.
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