E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

sábado, 3 de agosto de 2019

Rituais de passagem


Ainda não tenho trinta e quatro anos no Brasil, mas aqui no futuro sim. São 3:49h em Barcelona e eu despertei no meio da noite. Comi pizza demais, com gosto, ciente do meu excesso e acho que atacou meu fígado. A sorte do dia foi encontrar um Dramim remanescente na minha caixinha de remédios, que muito em breve deve “bater” e me derrubar novamente. Enquanto isso não acontece pensei em fazer um pequeno ritual de despedida dos trinta e três que eu sigo tendo lá em Araras, onde eu nasci, e porque eu aprendi também nesses últimos anos como os rituais são importantes. Comecei acendendo um incenso cheiroso no banheiro, todo mundo sabe que incensos são inevitáveis em rituais, tomei um banho morno, usei meu sabonete reikiano presente da minha amiga bruxinha, sussurrei alguns agradecimentos e a existência da água. Imitei a Xuxa na propaganda da Monange, e hidratei meu corpo até os pés, agradecendo imensamente a eles por terem sobrevivido ao esforço imenso dos últimos meses. Esse último ano foi diferente de todos, uma passagem curiosa por outros ambientes e dimensões. Voltei a ser aprendiz, a ser café-com-leite, e não foi fácil para o meu orgulho de leoa. Tive que ouvir muitas coisas que talvez não merecesse pela primeira vez, mas não refutei nada, apenas ouvi, e alguma coisa mudou dentro de mim.

Nesse último ano uma família russa me salvou do isolamento de ser uma pária sem papéis e sem função, me aceitando como cozinheira. A belíssima Ksenia com sua suavidade sofisticada - sinto que poderíamos ter sido boas amigas se houvesse tempo - mãe da Sasha, a caçula que era uma espécie de Hodor bebê sempre oscilando entre repetir o próprio nome e chamar por sua “mama” que respondia no materno russo, enquanto interagia no castelhano com o filho do meio, Ernest, um loirinho de oito anos gorducho e muito serelepe que vivia correndo atrás de mim me perguntando se faríamos “blinis”, crepes em russo. E o primogênito e sóbrio Andrei com seus doze anos tão solenes, aspirante a cozinheiro e guitarrista, via-se que era um grande parceiro para a Ksenia no momento que chegava independente com seu patinete da rua, e eles conversavam na língua do meu amigo Dostoievski. Foi emocionante preparar uma moqueca para eles, aprimorar minhas técnicas de risotto, e também apresentar a nossa versão brasileira do strogonoff. 

La moqueca
              
Quando meus papéis saíram em fevereiro procurei outro trabalho, e não havia tempo para escolher muito, o que me fez aceitar a oferta para ser “portera” de um restaurante self service nas famosas Ramblas. Meu chefe era o Gabrielle, um italiano muito cortês que sempre fazia questão de abaixar o toldo quando o sol batia bem no meu rosto por volta das 13h até às 15h. Eu trabalhava cinco horas por dia durante quatro dias na semana e folgava dois. Trabalhei todos os fins de semana no mês de março, e pude acompanhar todos os turistas passando na minha frente, oferecendo as nossas propostas de buffet por 12,95 euros para comer a vontade, enquanto levantava a tampa da grande paellera para mostrar seu conteúdo tradicional, quase sempre seguido de algumas interjeições de admiração. A paella não era lá aquelas coisas, mas era revigorante poder comer tudo que eu quisesse no final do expediente, não existe lugar mais feliz para mim que restaurantes. Acho que só perde para cinemas. 

La portera
                                             
Eu fiquei no restaurante por apenas um mês porque em abril fomos para o Brasil, e de repente eu vivia o sonho de estar deitada no colo da minha mãe, ou cozinhando para meus pais, ou no karaokê em São Paulo com meus amigos, ou no bar em Araras com minhas amigas. Andei de ônibus por São Paulo como uma criança que volta de um acampamento e dorme novamente em sua cama. Não existem dúvidas de que o Brasil é onde eu quero estar, mas precisou ser uma visita dessa vez. Na volta para Barcelona consegui um novo trabalho, além da Ksenia, preparando o almoço para a família da Natalia/Natasha e sua bela família, e me encantei pela pequena Aurora de sete anos, a filha do meio, muito prolixa e que me contou sobre sua paixão por Harry Potter depois de elogiar meu ceviche, um garotinha com ótimo gosto.

E finalmente, pelas madrugadas de sexta e sábado comecei a trabalhar em um bar balada, o Miramelindo, que é um dos mais antigos de Barcelona e fica no Passeio de Born. Lá eu respondia para a Merida, uma mulher forte filipina que havia começado no bar como faxineira a dez anos, e que hoje gerenciava um staff de dez pessoas todas as noites. Tenho quase certeza que a Merida não me curtia muito, não sei bem porque, talvez esse seja um dos muitos momentos novos na minha vida, não que eu seja super adorável, mas eu costumo não entrar no caminho das pessoas e  sempre sorrio, é um cacoete, não consigo evitar. Trabalhar como garçonete foi muito duro, e no Miramelindo o ritmo era frenético, centenas de pessoas passavam por lá, e eu me via de repente tendo que equilibrar mojitos cheios em uma bandeja enquanto subia uma escada em caracol, e só Deus sabe como eu odeio escadas caracol. Não tenho muitas queixas quanto a esse período de quase dois meses em que estive na night, as pessoas no geral eram muito simpáticas, tirando alguns bêbados chatos no caminho. Aprendi a importância que tem uma propina, a gorjeta daqui, e como é terrível quando os clientes insistem em ficar no bar depois que parou música e todos estão loucos para ir pra casa tomar um banho ou apenas sentarem-se.

                                                                        La camarera
  
E numa sexta-feira a tarde, voltando da Natalia, e enquanto ainda esperava a resposta de uma entrevista de trabalho em tempo integral, resolvi pedir as contas para a Merida. Me sentia esgotada e meus pés recém recuperados da fascite plantar latejavam pensando em mais horas em pé, subindo e descendo escadas. Foi uma intuição de que já era hora de voltar para o mercado, que o período de experimentações havia passado. Sempre tive essa curiosidade de trabalhar em um bar, e boa parte do que eu esperava estava ali mesmo, a camaradagem dos camareros, o clima animado das músicas dançantes e das pessoas se divertindo, e com certeza foi divertido preparar drinks e trabalhar na barra, como uma bartender nos momentos em que não havia tanta gente no bar e a Merida me deixava brincar no caixa. Mas aquele momento havia passado, e então na segunda-feira eu soube que havia passado na entrevista, e hoje trabalho com vendas para uma empresa grande, e vou para o meu escritório ao lado da praia de shorts trabalhar. Fecho meu ciclo e sonho com bastante tédio e nenhuma bandeja ou escada em caracaol para o próximo ano.


Aufwiedersehen!!