E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Gestar o adulto

Uma vez, ainda quando eu morava na Alemanha, assisti ao filme do Benjamin Button em Berlim na época de Berlinale em 2009. Tempos maravilhosos! Lembro especialmente da cena em que a personagem de Cate Blanchett conta para o protagonista Brad Pitt que estava Schwanger. Também fico pensando no embarazada do espanhol, que palavra mais engraçada. Aqui no Brasil estou grávida mesmo, algumas vezes gravidinha. 


Completo trinta e duas semanas no domingo, oito meses neste processo de crescimento, transformação e incômodo. As vezes fico me perguntando se existe algum tipo de performance que devo seguir. Como ouvir pela primeira vez os primeiros batimentos do meu filho ou filha. É esperado que a gente chore? Se emocione pelo milagre da vida? Senti o mesmo embaraço interno quando meu marido e eu decidimos nos casar. Esses grandes marcos na vida da mulher me deixam com uma sensação agridoce, como se eu fosse previsível. 


Nunca me dei muito bem com esta identidade feminina, talvez seja por isso que eu tenha tanto interesse na questão de gênero mesmo me identificando como mulher cis heterosexual. Estou casada e grávida, bem normativa. Mas preferi não saber o sexo do bebê, o que gera muito assunto com todas as pessoas que como sociedade participam de uma gravidez, primeiro a supresa por não querer saber o sexo, depois o palpite do que possa ser o sexo. Rola todo tipo de diagnóstico, seja o formato da barriga, o aspecto da minha pele ou a intuição da pessoa que quer saber. 


Eu do meu lado e depois de mais de meio ano vivendo sob esta circunstância sigo muito tranquila quanto a minha decisão, me fascina o exercício tão raro de pensar em um ser humano assexuado como alguns personagens fictícios da Ursula Leguin. Um bebê abstrato que cresce em minha barriga, sendo gerado com suas complexidades para chegar sem nenhuma expectativa de ornamentos. Mas, como podemos comprar presentes para um bebê sem sexo? Teremos que apelar para as cores neutras? O horror de usar amarelinho, bege, cinza, porque Deus nos livre um menino usar rosa ou uma menina usar azul! Talvez eu esteja me superestimando nesta escolha de não saber o sexo, passando um posicionamento político enquanto eu enquanto mulher tento extirpar a memória de ter sido uma menina. Os badulaques na cabeça, o brinquinho na orelha, os babados que minha avó costurava com tanto carinho para enfeitar sua primeira boneca depois de ter parido seis homens. Desde pequena me lembro de ficar fascinada com o mundo masculino talvez por ter tantos tios e observar a sua liberdade, principalmente as piadas escrachadas que eu fingia entender. Cresci com um tipo de humor diferente, um modo de agir fora do padrão, uma vontade de voar para longe e conquistar o mundo. Encarei alguns embates com a compulsória religião católica da família, se por um lado queria ser uma boa filha para minha mãe, meu coração e meu corpo pulsantes se encantavam com as excentricidades da vida livre e desempendida e o sexo. Tudo envolto em uma grande incoerência, uma incoerência que me leva de volta aos quase trinta anos, quando me vi solteira, como se não tivesse validade para um relacionamento, meio solta no contexto social. 


Ainda tenho dúvidas quanto ao meu talento para o casamento, muitas vezes sonho com a solitude e minha mente vez ou outra depois de uma briga me leva para um futuro alternativo em Nova Iorque. Mas agora eu sou uma quase mãe e os planos ficam para mais tarde, para depois da revolução. Na terapia, fui interpelada por não considerar meu bebê em um plano para o meu futuro, enquanto pensava mais em minha carreira e onde poderia estar com meu marido. Senti um certo julgamento até, mas a gravidez já me colocou em bons termos com a ideia de não planejamento, de não saber. 


Para além do sexo do bebê, não sei como vai nascer esta mãe em mim. Sinto que só me resta estar em paz com o imprevisto, pular de um penhasco coberto de neblina onde não se vê o que vai encontrar lá embaixo. A adrenalina sobe, a ansiedade e o nervosismo vêm, mas sei que o pulo é um bungee jump, tem uma corda elástica nas minhas costas, uma rede de apoio, a maturidade que uma mãe de trinta e seis carrega apesar do cansaço por não ter mais os vinte e poucos, ou menos, que minhas ancestrais tinham neste momento de suas vidas. Para a minha geração que vem optando por ter filhos depois dos trinta, ou quarenta, sinto que a gravidez é vista com mais solenidade. Estamos muito mais conscientes do que vamos perder ao invés de sonhar com a parte romântica de cuidar de um ser humano. Olhamos para nossos companheiros, quando são homens principalmente, com certo ceticismo. Calculamos para onde vão nossas carreiras, cuidamos do corpo, mas principalmente da mente. Lembrando que falo de um lugar branco e de grande privilégio de classe. 


O mundo está em colapso, talvez não faça muito sentido trazer mais gente, mas acredito que o ponto chave é entender que trazemos filhos ao mundo por motivos egoístas, pelo menos os filhos planejados como a(o) minha(meu). A criança não recebe a dádiva de vir ao mundo, ela não existe antes disso. A criança vem para preencher um espaço que adultos conscientes entendem como necessário para a vida deles. Foi assim comigo, a gestação veio como mais uma aventura, uma nova barreira que eu me propus a quebrar apesar de ser um ato tão corriqueiro e tradicional. É um passo grandioso que damos para alargar a nossa existência, o nenê não tem responsabilidade nenhuma com as nossas expectativas.  


Leda, personagem interpretada por Olivia Colman em A Filha Perdida, na genial adaptação com roteiro e direção de Maggie Gyllenhaal livro homônimo e meu romance preferido de Elena Ferrante