E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

terça-feira, 21 de junho de 2022

Mãe

Eu sempre amei dormir e acho que herdei isto que eu considero um dom que herdei da minha mãe ou apenas da convivência com ela e o prazer daquela sonequinha depois do almoço e do ficar mais tempo na cama aos sábados.  Há pouco, antes de editar este texto que tinha escrito para o Dia das Mães, estava deitada com meu pequeno bebê enquanto ele mamava para tentarmos embarcar em uma soneca compartilhada. Ele dormiu, eu fechei os olhos, mas em minha cabeça um turbilhão de coisas que eu queria estar fazendo naquela pausa do sono não me deixavam dormir. E despertei, para me sentar em frente ao computador e tentar participar do fórum online da faculdade de filosofia que eu tento perseguir a trancos e barrancos, mas aí me deu vontade mesmo de escrever um pouco. Ser mãe pra mim é nadar contra a corrente da presença deste amor descoberto - que é mesmo tudo de lindo e gigante que dizem - para encontrar o tempo para se lembrar de quem eu sou. Tudo isso resume bem o puerpério, que muitos dizem durar 40, 60 dias, e eu aqui passando do nonagésimo sinto estar no auge dele sem previsão de fim. Hoje eu fiz uma lasanha de abobrinha, no capricho, e parece que quase toquei na calda daquela felicidade anterior, tão despropositada e leve. Quando estamos vivendo por um bebê fica difícil perder tempo quando temos a possibilidade de nos visitar. Então eu escrevo, cozinho, estudo filosofia, brinco bastante com a minha cachorra. 

Na construção social a formação de mãe vem logo cedo para a menina, desde a bonequinha que deve ser cuidada, a menina também aprende como ser amável, como olhar para os outros antes de si mesma. E por esse motivo não temos como mérito o talento para "maternar", mas sim como algo construído durante toda a nossa vida, antes de qualquer formação profissional, o trabalho de mãe nos é imposto. Quero dizer que não tinha que existir mérito em ser mãe, uma vez que sua atuação/existência deveria ser reconhecida como qualquer outra, uma parte da sociedade, mas no sistema patriarcal tudo recai sobre essa figura que exerce os mais variados trabalhos, todos não remunerados, se faz necessária a santificação da mãe, e isso é um problema.

Não quero santificar a mãe porque o lugar dela é ao lado de todos, de carne e osso, com direito a todos os erros. Somente no lugar do erro e da humanidade é que podemos lograr empatia. A santa está acima de tudo. Ela até mesmo engravida e se mantém virgem. Eu mesma engravidei, nada virgem, aos 36 anos. Tive o privilégio e a possibilidade de viver a vida que eu quis até chegar neste lugar por escolha. E foram dez meses levando meu filho na barriga, com todo o enjoo, calor, e azia provenientes deste experimento. Pra mim tratava-se disso, um experimento, uma nova aventura que cabia em minha vida, um próximo passo interessante tal qual a escolha de morar sozinha em outro país.

Mas a figura da gestante iluminada vem acompanhada de elogios, de como estava "linda", "reluzente", "forte". E até então eu não sabia explicar muito bem por que aqueles elogios me incomodavam tanto, para além da tal romantização da gravidez que eu sempre insistia em dizer que era muito desagradável, pelo menos para mim. As pessoas pareciam não me ouvir para além da divindade que eu representava. "Você ainda vai sentir falta desta barriga." Eu sabia que não, eu até agora depois de três meses ainda comemoro o fim do barrigão. Veja bem como é curioso, ao mesmo tempo em que era forte e poderosa, quando decidia tomar um gole de vinho era julgada e recriminada pela escolha que agora não era somente minha, mas para o meu filho. Ora, vamos chegar em um consenso, por que sou forte e poderosa, mas não posso tomar uma decisão referente ao meu corpo? A cilada da santificação da mãe é que ela ao mesmo tempo infantiliza a mulher deixando-a em um lugar terrível de grande responsabilidade, ao mesmo tempo em que não a chancela para tomar suas escolhas individuais. Vide as últimas semanas horrendas de retrocesso ao direito ao aborto legal nos EUA, sem contar o caso de estupro da atriz Klara Castanho, escancarado pelos abutres das fofocas de famosos sem nenhum pudor e violentando mais uma vez a vítima. 

Deve ser por isso que eu amo tanto a Elena Ferrante, porque no momento em que ela cria personagens femininas não somente fortes, como também extremamente falhas e muitas vezes antipáticas, ela nos lembra da humanidade das mulheres, e de certa forma retira um pouco do fardo do feminismo que se estabeleceu recentemente no capitalismo graças à Internet. O patriarcalismo é tão sagaz, que consegue subverter até mesmo a noção de empoderamento feminino para uma nova sobrecarga de responsabilidade sob a mulher, para que seja bem-sucedida, amável, magra e uma grande mãe que sempre tem paciência com os filhos.

Quero permissão para alguns dias ser péssima, desagradável e antissocial, tanto quanto qualquer pai tem permissão de ser. Não adianta dar um beijo e um presentão para a sua mãe antes dela pedir licença pra lavar toda a louça sozinha, ou se você há séculos não pergunta como ela está, o que busca da vida e se ainda se lembra dos sonhos profissionais. É muito difícil elogiar uma mãe sem depreciar outra, precisamos enxergar as mães em sua individualidade, em como eram antes do filho. A sociedade precisa voltar a a entender que as crianças são o nosso investimento futuro e, portanto, responsabilidade de todos. A licença paternidade ainda tem cinco dias úteis no Brasil. Aqui em casa graças ao trabalho flexível do meu marido pudemos compartilhar o cuidado com o nosso amado recém-nascido, que está tendo a sorte de ter o colo do pai tão importante para a construção dessa relação futura e de sua masculinidade. É triste que os homens não possam ter esse tempo dedicado por lei, é injusto com as mulheres e contraproducente para todos como sociedade. 



 

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