E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A mulher tá off

Não resisti e comprei uma fantasia de carnaval pro meu filho. A fantasia era de pirata, mas quando eu fui ver era pequena demais pro grande bebê. Voltei para a loja de fantasias Mari Festa que existe em minha cidade na mesmíssima localização desde a minha infância, e troquei a fantasia por um body maior do Hulk. Ao passar para o caixa para acertar a diferença da troca, avistei os óculos divertidos com o famoso "a mãe ta on" na lente. Também na pude resistir e comprei, mais por uma flagrante necessidade de auto ironia que qualquer coisa. Não por acaso estava ouvindo um podcast que abordava a série Fleabag pelos olhos da Psicanálise com a direção da Tati Bernardi - aliás, o episódio tá incrível -  e devo ter personificado o espírito Fleabag, comprando esses óculos dizendo algo que significam totalmente o oposto dos meus sentimentos neste momento, wink wink na sequência para a câmera imaginária, quarta parede de Araras. 

Talvez o "mãe tá on" esteja coerente na verdade, a mãe tá super on enquanto a mulher tá off, e o que seria o puerpério além disso? Uma mulher off. Mulher no sentido moderno da palavra, da nossa geração millenium, mulheres que tiveram aventuras sexuais, estudaram muito, escolheram seu parceiro com muito afinco para finalmente procriar e se verem no mesmo lugar ocupado por suas avós, mães, bisavós. A mãe. Eu neste momento travo uma luta com a amamentação, esse ato, esse modo de vida que abarca tudo que me envolve, tudo que me alimenta e a forma como me visto a quase um ano. Muito se fala sobre os benefícios do aleitamento materno, do contato pele com pele, e eu sou muito grata por ter tido esta oportunidade. Mas pouco se fala sobre o desgaste físico, o esquecimento de si mesma enquanto mulher que isso acarreta. Eu fiquei literalmente sem menstruar por oito meses por conta da amamentação, e só menstruei quando tirei a livre demanda. Não vou nem entrar no mérito da libido, que cai consideravelmente neste ínterim, porque claro, seu corpo que acabou de se converter literalmente em uma fábrica de ser humano, agora se transforma em um produtor contínuo e sob demanda de nutrientes específicos. 

E tudo que eu disse antes não tem um caráter geral, com toda a certeza, por isso mesmo que eu mantenho essa pegadinha nominal dos sinceros devaneios já há quinze anos, esta é a minha visão da coisa. E eu tenho sentido muita irritação, tristeza, e desconforto com a amamentação nos últimos tempos. Pra começar, dia sim dia não meu mamilo é machucado pelos dentes do meu filho, cheguei até o ponto de ter um deles meio pendurado, sim, isso acontece! E graças à deusa do laser consigo me recuperar rapidamente, mas a que custo? Cada aplicação me leva oitenta reais suados que serviriam para dois pacotes de fraldas. O peso emocional de tudo que envolve manter um ser humano sadio pode ser enlouquecedor, e eu estou firme no propósito de que para o meu filho ficar bem eu preciso ficar bem. Primeiramente preciso conseguir dormir. 


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

O virus

Meu filho teve o primeiro sinal de virose em uma quinta-feira, exatos quatro dias depois de ter começado a frequentar a creche meio período. Ele tem dez meses e até então não tinha ficado doente, acho que ficamos mal acostumados. Muito se fala sobre a tristeza que é essa situação, mas claro que na vida real tudo ganha outra perspectiva específica da família. A doença do meu filho já dura mais de duas semanas, oscilando da diarreia, febre para a tosse e um produtor vitalício de catarro que sai por todas as aberturas possíveis do nenê, inclusive os olhinhos. O brinde foi que eu também fiquei doente, o que tem mexido muito com o meu ego de "mulher saudável, parto natural, nunca peguei covid". Não sei dizer se é o meu ego que está sendo maltratado ou se é ele mesmo o instigador do caos emocional que me aflige, sobrepujando a intuição materna que traz calma e confiança nas decisões que se toma acerca de seu bebê. Não foram poucas as coisas ruins que eu pensei sobre mim mesma nesta últimas duas semanas, e neste momento enquanto meu filho tira o cochilo matinal dele e eu rezo para que ele durma direto no mínimo duas horas, tenho certeza que sou um ser humano egoísta e mesquinho, uma mãe minimamente boa, para metaforizar Winnicott.

Na elaboração racional é claro que sei que estou fazendo o melhor que posso na atual conjuntura, marido em outra cidade trabalhando o dia todo, eu tendo que trabalhar também remotamente e com novas demandas, meu corpo cansado que mesmo assim precisa seguir a rotina crossfit de pega nenê de quase onze kgs, dá o tetê produzido por este mesmo corpo fodido de trinta e sete anos, agacha com nenê no colo, dá comida pra cachorra, pensa no que comer e para além de tudo isso, todo o relacionamento de mãe com a criança parece que se torna uma guerra. A criança exausta e com o corpinho fragilizado não aceita trocar de roupa, não aceita limpar o nariz, não aceita comer, e não estou nem entrando no limbo que é tentar fazer uma inalação. Tudo é motivo de choro e eu não sou suficiente mais para aplacar este desconforto, tenho apenas que seguir no seu rastro enquanto brinca, prega peças, o que na verdade é um bom sinal de recuperação mas um mal sinal pra mãe que só quer ficar parada.

Queria ter estudado mais Biologia quando era tempo, entender esse bicho do vírus da virose, que pra mim tem se mostrado o maior desgraçado de todos, parece que ele é formado por uma miscelânea de sintomas que ficam no shuffle. Quer diarréia? Pá! Quer febre? Pá? Agora fique uns três dias sentindo-se bem, vai até mandar o bebê de volta a escola achando que melhorou, vai se sentir disposta até mesmo pra uma prática de yoga, até que pá! Cai de cama, garganta fecha, catarro quase te matando asfixiada, nenê com mais catarro ainda!

O pediatra do Raul é homeopata, o que significa que ele é zen, fofo, educado e brincalhão. Mas ele também fala com a maior cara de pau que não vai dar pra ir na escolinha a semana toda e que essa virose talvez volte em breve enquanto receita 5 bolinhas de açúcar pra aplacar a doença que acomete a família. Ah, ele também, e sempre com um sorriso tranquilizador pede para fazermos inalação SETE VEZES ao dia na criança. "Mas Dr, ele não deixa fazer" . É assim mesmo, segure ele no colo (pose fofa como se estivesse abraçando um ursinho), e segue em frente. Não conhece meu filho, que tem a força de três popeyes e ignora o fato de eu estar desfalecendo e praticamente sem voz na frente dele, vai ser tranquilo fazer a inalação, porque não DEZ VEZES POR DIA, DR??

E então, um olhar raro, um olhar único, minha mãe enxerga meu estado e me leva carregada para o hospital. Queria muito voltar para o mesmo apartamento em que ficamos meu recém nascido e eu, recebendo cuidados e marmitas prontas nem que fosse por um dia. Mas não era o caso, então entro na sala da médica com minha mãe como se tivesse sete anos (como é boa essa sensação), ela tenta chamar a atenção da lacônica e desinteressada plantonista que nem me olha nos olhos e já vai receitando mil drogas (não estou reclamando dessa parte, obrigada drogas), "você pode dar uma ouvida no pulmão dela, ela já teve pneumonia três vezes". Tá bom que essa época da pneumonia foi antes do advento da Internet, mas vamos lá, temos um histórico. A boa Dra. feliz em me despachar o quanto antes afirma que está tudo bem, que o  catarro está concentrado apenas na garganta e que eu devo ficar boa em três dias. Me desculpe senhor pediatra, mas era dessa médica zumbi que eu precisava! Ela me direciona para a sala de injeções onde eu disponibilizo, com um sorriso no rosto, ambas nádegas para duas picadinhas "chatas" segundo a enfermeira. As picadas entram, tranquilas, até a hora de passar pela porta e precisar seguir o desfile tal qual um tiranossauro rex, perninhas arriadas e uma ardência absurda que durou ainda uns vinte minutos. Me tranquilizo, já pari meu filho de 4kg sem anestesia naquele mesmo local, melhor isso que o corpo inanimado na cama.

E segue o jogo até que todo esse ciclo termine, e dizem, que logo começa novamente.
 

sábado, 31 de dezembro de 2022

E lá se vai 2022

Deixa eu ver, a última vez que estive por aqui foi em junho, o que pode parecer pouco na cronologia adulta mas que em tempos de bebê são séculos! Em junho meu filho tinha três meses e acabava de aprender a virar, o que nos causou dores de cabeça por passar de um ser praticamente inanimado para um em ação. Sem contar quando ele caiu da nossa cama a despeito dos avisos do pediatra que sempre dizia para nunca deixa-lo na cama, e que resultou em um galo exposto em sua linda testa sempre nos recordando do fato. Na época até fiquei com medo de ser delatada para o conselho tutelar por ter deixado meu filho cair da cama, o que na verdade foi sob os cuidados do pai, eu mesma o deixaria cair uma outra vez dois meses depois de forma completamente idiota enquanto pegava uma fralda para troca-lo. Coisas que acontecem, pode-se dizer. É esperado! Mas mãe tem aquela coisa chata de sentir o coração em carne viva. Quando digo generalizando a palavra "mãe", quero deixar bem claro que me refiro a mim mesma em minhas idiossincrasias. Essa metáfora do coração como o centro dos nossos afetos faz muito sentido, porque o aperto que vem da queda de um filho pequeno da cama enquanto chora até ficar vermelho, justo o meu menino que nem chora direito, é muito bem e literalmente localizado no centro do peito. E então, venho tentando sobreviver desde março a este grande clichê que é quase morrer de amores e de medo por meu filho. Mas nem só de más notícias vive 2022, apesar das tantas perdas célebres, este ano trouxe esperança (brilha estrelinha!), e ser mãe tem dessas também. Minha vida ganhou perspectiva, de repente as coisas que sempre foram um tanto quanto abstratas, e quando digo coisas me refiro a planos do futuro, estudos, carreira, amor, todas estas coisas que aprendemos com a indústria cultural e a própria sociedade, ganham consistência. É simples, você precisa pensar em como oferecer o melhor para esta pequena criatura que vive nos seus braços, cujo relevo corporal praticamente se encaixa ao canto do seu corpo enquanto você anda pela casa catando pelo da cachorra, brinquedos ou arrumando a cama. Claro que agora ele engatinha profissionalmente, desde os seis meses e parece cada vez melhor nesta arte, dando pequenos saltos e depois engatando a quinta em velocidade surpreendente. Agora o menino escala mesas, cadeirinhas, tudo que estiver ao alcance dos seus 70 e tanto centímetros. E essa parte é chata, vamos ser bem honestos, estar sempre à espreita dos perigos em torno do nenê é cansativo, o tempo físico simplesmente para enquanto seu corpo de mãe madura 35+ padece. É um tal de agacha e fala "não" sem fim. Dizem que quando começa a caminhar piora, mas às vezes queremos apenas um desafio diferente para mudar um pouco os ares. Jurava que o pequeno caminharia ainda este ano, mas vai ficar pra 2023. 

Aquele momento maravilhoso. E sim, ele segue na cama, desculpe-nos Dr. Carlos!


Eu tenho levado para passear uma revista que comprei com um artigo especial sobre o Dr. Donald Winnicott que já foi pra Juqueí, São Paulo, e muitos lugares de Araras. Pra quem não conhece, o Winnicott foi um pediatra e psicanalista inglês responsável pelo termo "mãe suficientemente boa", que é um termo tão maravilhoso e acurado que dispensa explicações. Ontem meu irmão comentou como a psicanálise tende a nos aproximar ou nos relembrar de nossa origem animal. Minha cunhada, psicóloga e eu, uma profissional diversa de humanas muito interessada no tema, ficamos meio sem resposta, mas acho que faz sentido sua linha de raciocínio. De maneira didática e muito empática, o Dr. Winnicott nos apresenta um mundo infantil mais ou menos sob o ponto de vista biológico. No sentido de que mães são mamíferos com seus filhotes que são resultado de milhares de anos de evolução, e também sobre como guardamos dentro de nós mesmas os segredos para oferecer tudo que a nossa cria precisa. Eu que me considero uma pessoa muito resolutiva e assertiva, me vejo às voltas com a insegurança de não saber o que fazer com a rotina do meu filho. A tal da rotina que as coaches de amamentação/sono/introdução alimentar/peido, e tudo que o Instagram oferece vivem repetindo como a coisa mais importante do mundo. E que a deusa abençoe essas profissionais, em sua grande maioria mães que encontraram sua vocação entre um parto e outro, e que seguem ajudando outras mães. Mas algumas vezes o excesso de informação atrapalha muito, gera ansiedade e eu tento estipular um ritmo artificial em cima de algo que eu esqueço já estar funcionando na dinâmica que foi criada em nossa casa. Temos o pai dele que tem o seu jeito matinal rabugento próprio, e que até tem acordado mais sorridente graças ao pimpolho. Temos uma cachorra de 25 kgs que solta pelos que formam grandes bolotas brancas que servem de brinquedo ou até mesmo um possível alimento para o nenê enquanto tropeça neles no chão. A psicanálise talvez não somente nos lembre de nossa origem animalesca, mas esteja aí para apontar como sempre somos mais de uma coisa, e como o nosso ego é formado a partir da construção social que entra em choque com a criança que é puro inconsciente, inconsequente e livre. É necessário deixa-la assim, o máximo de tempo possível porque como diria Rousseau: O homem nasce bom, a sociedade que o corrompe".


 A pobi da revista do Winnicott


terça-feira, 21 de junho de 2022

Mãe

Eu sempre amei dormir e acho que herdei isto que eu considero um dom que herdei da minha mãe ou apenas da convivência com ela e o prazer daquela sonequinha depois do almoço e do ficar mais tempo na cama aos sábados.  Há pouco, antes de editar este texto que tinha escrito para o Dia das Mães, estava deitada com meu pequeno bebê enquanto ele mamava para tentarmos embarcar em uma soneca compartilhada. Ele dormiu, eu fechei os olhos, mas em minha cabeça um turbilhão de coisas que eu queria estar fazendo naquela pausa do sono não me deixavam dormir. E despertei, para me sentar em frente ao computador e tentar participar do fórum online da faculdade de filosofia que eu tento perseguir a trancos e barrancos, mas aí me deu vontade mesmo de escrever um pouco. Ser mãe pra mim é nadar contra a corrente da presença deste amor descoberto - que é mesmo tudo de lindo e gigante que dizem - para encontrar o tempo para se lembrar de quem eu sou. Tudo isso resume bem o puerpério, que muitos dizem durar 40, 60 dias, e eu aqui passando do nonagésimo sinto estar no auge dele sem previsão de fim. Hoje eu fiz uma lasanha de abobrinha, no capricho, e parece que quase toquei na calda daquela felicidade anterior, tão despropositada e leve. Quando estamos vivendo por um bebê fica difícil perder tempo quando temos a possibilidade de nos visitar. Então eu escrevo, cozinho, estudo filosofia, brinco bastante com a minha cachorra. 

Na construção social a formação de mãe vem logo cedo para a menina, desde a bonequinha que deve ser cuidada, a menina também aprende como ser amável, como olhar para os outros antes de si mesma. E por esse motivo não temos como mérito o talento para "maternar", mas sim como algo construído durante toda a nossa vida, antes de qualquer formação profissional, o trabalho de mãe nos é imposto. Quero dizer que não tinha que existir mérito em ser mãe, uma vez que sua atuação/existência deveria ser reconhecida como qualquer outra, uma parte da sociedade, mas no sistema patriarcal tudo recai sobre essa figura que exerce os mais variados trabalhos, todos não remunerados, se faz necessária a santificação da mãe, e isso é um problema.

Não quero santificar a mãe porque o lugar dela é ao lado de todos, de carne e osso, com direito a todos os erros. Somente no lugar do erro e da humanidade é que podemos lograr empatia. A santa está acima de tudo. Ela até mesmo engravida e se mantém virgem. Eu mesma engravidei, nada virgem, aos 36 anos. Tive o privilégio e a possibilidade de viver a vida que eu quis até chegar neste lugar por escolha. E foram dez meses levando meu filho na barriga, com todo o enjoo, calor, e azia provenientes deste experimento. Pra mim tratava-se disso, um experimento, uma nova aventura que cabia em minha vida, um próximo passo interessante tal qual a escolha de morar sozinha em outro país.

Mas a figura da gestante iluminada vem acompanhada de elogios, de como estava "linda", "reluzente", "forte". E até então eu não sabia explicar muito bem por que aqueles elogios me incomodavam tanto, para além da tal romantização da gravidez que eu sempre insistia em dizer que era muito desagradável, pelo menos para mim. As pessoas pareciam não me ouvir para além da divindade que eu representava. "Você ainda vai sentir falta desta barriga." Eu sabia que não, eu até agora depois de três meses ainda comemoro o fim do barrigão. Veja bem como é curioso, ao mesmo tempo em que era forte e poderosa, quando decidia tomar um gole de vinho era julgada e recriminada pela escolha que agora não era somente minha, mas para o meu filho. Ora, vamos chegar em um consenso, por que sou forte e poderosa, mas não posso tomar uma decisão referente ao meu corpo? A cilada da santificação da mãe é que ela ao mesmo tempo infantiliza a mulher deixando-a em um lugar terrível de grande responsabilidade, ao mesmo tempo em que não a chancela para tomar suas escolhas individuais. Vide as últimas semanas horrendas de retrocesso ao direito ao aborto legal nos EUA, sem contar o caso de estupro da atriz Klara Castanho, escancarado pelos abutres das fofocas de famosos sem nenhum pudor e violentando mais uma vez a vítima. 

Deve ser por isso que eu amo tanto a Elena Ferrante, porque no momento em que ela cria personagens femininas não somente fortes, como também extremamente falhas e muitas vezes antipáticas, ela nos lembra da humanidade das mulheres, e de certa forma retira um pouco do fardo do feminismo que se estabeleceu recentemente no capitalismo graças à Internet. O patriarcalismo é tão sagaz, que consegue subverter até mesmo a noção de empoderamento feminino para uma nova sobrecarga de responsabilidade sob a mulher, para que seja bem-sucedida, amável, magra e uma grande mãe que sempre tem paciência com os filhos.

Quero permissão para alguns dias ser péssima, desagradável e antissocial, tanto quanto qualquer pai tem permissão de ser. Não adianta dar um beijo e um presentão para a sua mãe antes dela pedir licença pra lavar toda a louça sozinha, ou se você há séculos não pergunta como ela está, o que busca da vida e se ainda se lembra dos sonhos profissionais. É muito difícil elogiar uma mãe sem depreciar outra, precisamos enxergar as mães em sua individualidade, em como eram antes do filho. A sociedade precisa voltar a a entender que as crianças são o nosso investimento futuro e, portanto, responsabilidade de todos. A licença paternidade ainda tem cinco dias úteis no Brasil. Aqui em casa graças ao trabalho flexível do meu marido pudemos compartilhar o cuidado com o nosso amado recém-nascido, que está tendo a sorte de ter o colo do pai tão importante para a construção dessa relação futura e de sua masculinidade. É triste que os homens não possam ter esse tempo dedicado por lei, é injusto com as mulheres e contraproducente para todos como sociedade. 



 

sexta-feira, 25 de março de 2022

Relato de um parto

Não é à toa que usamos o termo "parto" pra algo que gera muito trabalho para ser feito. O meu começou no momento em que soube que estava grávida. No meu caso em Julho de 2021 em um contexto de primeiras vacinações da covid 19, como sabemos, a pandemia que assolou toda a população mundial em Março de 2020. Ainda morávamos em Barcelona, meu marido, o Carlinhos e eu, quando a pandemia estourou e tivemos que ficar totalmente isolados em casa, no lockdown de lá somente uma pessoa da família podia sair para o mercado por exemplo, senão levava multa. Preocupados com o rumo das coisas e cansados de saudade resolvemos voltar para o Brasil em setembro daquele ano, depois de pouco mais de dois vivendo ali. Decidimos não voltar para São Paulo, onde nos conhecemos e morávamos originalmente, mas agora para a minha cidade natal, Araras, no interior. O Carlinhos, paulistano, sempre flertava com a ideia de morar em uma cidade pequena, já eu jurava de pé junto que não voltaria jamais depois de ficar fora mais de quinze anos. Era a primeira de muitas mudanças dogmáticas internas que eu atravessaria nesse percurso que começou lá na Catalunya quando resolvi tirar o DIU e aguardar um nenê a algum momento. O nenê acabou sendo concebido só em Junho, quase um ano depois e com algum atraso acreditamos que por conta do meu diagnóstico de hipotireoidismo, e então exatamente no dia da tão sonhada vacina da covid 19, brasileiríssima do instituto Butantan, eu também recebi a confirmação da gravidez através do exame feito no laboratório. No whatsapp a moça me respondia à pergunta sobre o resultado com um "positivo", enquanto eu esperava na fila de carros para vacinar. Minha reação foi um "eita" desengonçado, e dali pra frente seria um "eita atrás de vish".

41 semanas

Poucos sabem disso, mas a gravidez humana não dura normalmente nove, mas sim dez meses. São as fatídicas 40 semanas que prescrevem a DPP, ou data provável do parto, no nosso caso dia 13/03/2022. Convenci o Carlinhos para não sabermos o sexo do nenê até o nascimento, queria aproveitar mais essa experiência psico-antropológica de não associar a espera dessa criança com a socialização de um sexo, pra tentar pensar na criança como um ser humano, uma página em branco. E foi assim até o fim. Inventamos alguns nomes fictícios para nos referimos ao rebento(a): Bolota, Neydaozitus, Cachorrão, era divertido.


Eu parei de trabalhar e entrei em licença depois da sexta de carnaval, dia 28/02. Tinha quase certeza que o nenê viria lá pro início de março, um(a) pisciano(a) meio cabeça nas nuvens, o que me daria duas semanas de folga e descanso antes de todo o tsunami da maternidade, mas o Raul não queria sair tão cedo e escolheu nascer ariano intenso no dia 22/03. 


Enquanto os dias iam passando, principalmente a data da DPP, eu fui ficando, não diria ansiosa porque eu sei bem o que é ser ansiosa, mas impaciente com o tempo e com a rotina da gravidez, principalmente com o calor insuportável que fazia e que foi dar uma folga exatamente no dia 21, segunda-feira quando começou o trabalho de parto. No domingo tinha decidido, além dos diversos métodos de indução natural do parto, como o chá da Naoli (uma bomba caliente mexicana feita com canela, gengibre, chocolate e pimenta), sexo, acunputura, e capsulas de prímula. No final das contas decidimos por algo um pouco mais "físico", o descolamento da membrana, que se caracteriza por descolar a membrana da bolsa embrionária, do colo do útero para ajudar no preparo do colo a futura passagem do feto. Eu poderia fazê-lo com a obstetra ou com a minha doula que também é enfermeira obstetra, mas optei por fazer em casa mesmo, com a Júlia, doula/enfermeira, no domingo. 


A primeira vacina já grávida

Jantamos, Carlinhos e eu com meus pais, meu irmão e cunhada em uma pizzaria no domingo, e na segunda às 8h percebi com uma animação grande a sensação da primeira contração de treinamento ou pródromo. Acredito que a animação se devia à ocitocina, a grande companheira das gestantes, mas também à quebra da rotina de grávida avançada que já me cansava muito. Mas a alegria passou rapidinho, por volta das 14h, quando eu senti a primeira contração que lembro de ter descrito como "mortífera" no grupo das doulas, e que me deu vontade de vomitar o café da manhã e almoço reforçados que eu tinha preparado para estar forte durante o dia até a hora do expulsivo, que é o momento final do parto quando literalmente o útero se contrai para "jogar o bebê pra fora".


Por volta das 16h, a Marina, outra doula e também enfermeira obstetra do coletivo*, chegou em casa. Eu tinha tomado um banho quente depois da contração mortífera e já estava levando esse negócio todo de trabalho de parto muito a sério, sem risadinha. Ela fez massagens deliciosas no meu corpo todo com um óleo essencial de sálvia e  ouviu o coração do bebê. Como eu já estava mais calma com a massagem e tendo contrações mais espaçadas ela foi embora dizendo que poderia voltar a qualquer momento mas que achava que o parto se aceleraria na madrugada ou no dia seguinte cedo.


Exatamente às 20h meu marido mandou a seguinte mensagem no grupo das doulas: "Meninas boa noite. A dor forte voltou e a Van não tá conseguindo descansar. Ela tenta deitar mas a dor vem muito forte. E mudando de posição,  mesmo sentada também tá complicado".


Pouco menos de uma hora depois a Júlia, também grávida de quase 32 semanas, chegou em casa. Neste momento eu já não era de muitos amigos, as contrações vinham muito doloridas e nada parecidas umas com as outras. Ora eu sentia uma dor enorme na barriga, ora na lombar e quadris. Lembro de ficar calculando como desceria as escadas de casa até a garagem com essa dor paralisadora, e muito menos o caminho de casa até o hospital que duraria menos de 10 minutos naquele horário e em Araras. Quando fui ao banheiro já vi que o tampão, uma espécie de gosma com sangue e muco que protege o colo uterino, tinha saído. Nesta altura já não tinha muito espaço de tempo ou folga entre uma contração e outra, e não é possível fazer outra coisa senão sentir dor quando a contração vem. Então, depois de dizer que queria ir pro hospital e enquanto o Carlinhos pegava minha mala e a do bebê, arrumadas e aguardando há três semanas, corri escada abaixo até o carro na folga de uma contração e esperei por eles. A ida ao hospital foi difícil com as dores, pedia toda hora pra ele dirigir bem devagar, tudo piorava salvo pelo ventinho ameno que vinha do mundo lá fora, em outra dimensão externa àquela dor que eu não sabia quando e como iria parar. Eu sentia medo e muito respeito, mas pensando em retrospecto esse sentimento de respeito com medo e uma sensação de humildade foram constantes desde o início da gestação, há quase um ano lá da primeira vacina de três do covid.


Não vou saber precisar muitos os horário porque meu mundo estava centralizado em sobreviver às dores e tentar respirar. Mas chegamos ao hospital por volta das 22:30h e enquanto o Carlinhos fazia a pré internação na emergência, tal qual um filme de comédia romântica, minha bolsa estourou no chão espirrando uma água transparente e meio rosa pelo chão do hospital e minhas pernas. Fomos encaminhados para a enfermaria com uma divisória simples com mais duas pessoas, umas delas lembro que tinha um homem sem uma das pernas. Eu seguia nas contrações, absurdamente dolorosas, enquanto aguardávamos a liberação do convênio para ir ao quarto. Nesse meio tempo a enfermeira de plantão fez o exame de toque para sentir a dilatação e constatou que estava entre 4 e 5cm, que eu achei bem poucos e desanimadores perto da dor que eu estava sentindo, mas logo fui animada pela Julia que disse que o marco dos 5 é bem difícil mesmo. Precisaríamos de 10 para o bebê nascer, ou seja, apesar de estar há menos de cinco horas sentindo contrações fortes, já me sentia bem cansada para o que ainda teria por vir e que de novo, não sabia quanto tempo iria durar.


Finalmente fomos liberados para o quarto, e a Júlia e o Carlinhos entraram comigo. No quarto eu tinha um banheiro só meu, com chuveiro, um privilégio enorme e tudo indicaria que eu evoluiria o parto por ali mesmo, sem precisar me movimentar até o centro cirúrgico como de praxe. Nesse momento eu acho que entrei no chuveiro deixando a água quente cair na barriga, o que ajudou um pouco, mas as dores e o cansaço eram imensos e eu já comentava isso com a Júlia. Eu sempre disse que não saberia que tipo de parturiente eu seria, muito menos mãe. Encarei esse desafio todo como um divisor de águas, um batismo de sangue que passaria com a confiança no processo e no que eu havia construído como indivíduo até aquele momento. O engraçado é que eu passei pelo trabalho de parto muito como eu sou. Realista, objetiva e introspectiva. Suportava as dores da contração de olhos fechados sempre tentando respirar e soltando o corpo, lembrando das aulas de yoga e tentando deixar o cérebro e a razão desligados. Verbalizava vez ou outra para a Júlia como estava cansada e que já não aguentava mais. Queria buscar alguma luz no fim do túnel, que ela me desse uma ideia, mas ela seguia repetindo que eu já tinha chegado até aquele momento, que estávamos no fim. Queria entender como funcionaria uma possível analgesia, tão atraente frente às contrações que mal me davam folga naquele momento, mas a Júlia me disse que ainda teriam que contatar a anestesista para deixá-la preparada para vir até o hospital ainda, e que teríamos que ter a dilatação de 10 cm antes de tudo para a minha obstetra, a Dra. Marianna aprovar. A enfermeira de plantão e a Júlia ficavam em contato com a Dra. durante todo o tempo pra ela saber quando vir pra entregar o bebê quando estivesse pronto, mas para isso a enfermeira de plantão teria que fazer outro exame de toque antes, o que me dava arrepios porque ele possivelmente acarretaria, como foi horas antes, mais um ciclo de de contrações absurdas em um mundo de contrações que eu já vivia.


Nesse momento acho que era por volta de meia noite e meia quando tomei outro banho, eu já chorava de desespero e cansaço, só queria conseguir deitar e dormir duas horas, mas era impossível deitar. Esqueci de comentar que eu tinha um acesso com Buscopan na veia que parecia uma piada para lidar com a dor daquelas contrações. Em dado momento, depois do banho, meio desfalecida e sentada na privada do banheiro de onde eu não saia mais, a próxima contração despertou um grito potente de uma voz que não era minha, e então a Júlia percebeu que era um sinal do expulsivo. As contrações agora vinham com mais espaço, como que me dando um tempinho de descanso pro momento final e mais dolorido. Entre uma e outra eu conseguia cochilar e praticamente sonhava, ia pra outra dimensão, mesmo que por minutos, estava exaurida, e ficava repetindo como não aguentava mais, porque externamente eu parecia plena, normalmente quieta e de olhos fechados. Então a Júlia ofereceu de fazer o toque pra ver a dilatação, e foi quando ela me anunciou os tão sonhados 10 e que já podia sentir a cabeça do bebê, seu cabelinho, ela disse. Foi a primeira vez que eu sorri em horas e me lembrei do livro que a minha amiga Fefa tinha emprestado logo no início da gestação, o Parto Ativo. No livro a autora explica sobre a importância do movimento durante o parto,  porque a descida do bebê não é reta, mas sim em giros, como um parafuso. Uma pequena digressão aqui a título de curiosidade, quando o ser humano deixou de ser quadrúpede para se apoiar em duas pernas, toda a estrutura óssea precisou se adaptar à esta anatomia e por isso também as gestações passaram a ser mais curtas, para que o filhote humano pudesse passar pelo canal mais estreito e assim terminar a gestação externa fora do corpo da mãe. Por isso os bebês humanos são menos evoluídos mecanicamente que os outros mamíferos quadrúpedes, como por exemplo o bezerro que já consegue andar pouco tempo depois do nascimento, porque nós precisamos terminar a gestação no mundo externo.


Minha licença anterior ao nascimento durou três semanas de muito descanso


Voltando para o expulsivo do meu parto e para a lembrança do livro, pensei na gravidade. Era difícil sair da posição que estava sentada no vaso e seria possível esperar o bebê nascer ali mesmo a tempo de segurar sua cabecinha sem cair na privada, mas achei que poderia ajudar no processo de descida estar em pé, e então fiquei apoiada como nossos ancestrais, com quatro apoios enquanto aceitava as contrações que agora já vinham mais frequência graças a ajuda da ocitocina que a obstetra tinha pedido para colocar no acesso e ajudar no processo de expulsão. Essas contrações finais eram sentidas como pulsações que reverberam para o corpo todo e pra mim pelo menos era impossível não gritar. É como se um soluço direcionasse uma câimbra de corpo generalizada, que só de lembrar sinto um calafrio. A pressão da força que o corpo mandava fazer era muito forte no ânus e na vagina, e a Júlia só me dizia que faltava muito pouco pra cabeça do bebê aparecer. Em algum momento as enfermeiras nos pediram para sair do banheiro para irmos ao centro cirúrgico e eu respondi que seria impossível e inadmissível cogitar deitar em uma cama naquele momento. A Júlia já estava preparada para pegar o nenê nascendo, o Carlinhos estava junto todo o momento acompanhando a minha luta, e então a Dra. Marianna chegou, sentou meio que no chão junto com a doula grávida, e nas próximas contrações eu já sentiria a coroa de fogo, que é a quando a cabeça do nenê "coroa" na vagina e todo mundo fica muito animado menos a mãe que sente uma dor que ela não sabia que era AINDA possível sentir depois de horas de dor alucinante. E então dentro de mim, exausta, e já sem força nenhuma, me concentrei em respirar e confiar na gravidade, respirei fundo junto com o que já parecia uma torcida de final de Copa de mundo me dando força em uníssono naquele banheiro escuro na madrugada, e pude sentir sua cabeça sair para logo em sequência a criança escorregar com seu corpo inteiro para as mãos da médica. Me ajoelhei e respirei, minhas pernas tremiam, olhei para aquele menino que vivia na minha barriga há quase um ano, nos conhecemos. Olhei para o meu marido, aturdido com uma tesoura nas mãos para cortar o cordão umbilical, não sem esperar alguns minutos antes da pulsação da bolsa parar. E então me passaram o Raul, que veio pro colo, onde eu o coloquei colado na pele e pude me apresentar a ele enquanto dizia também para mim mesma que era, a partir daquele momento, mãe.

 

O grande encontro

 *A @equipedoulamar é uma equipe multiprofissional de assistência a gestação, parto e puerpério, contando com uma equipe de Doulas, Enfermeiras e Fisioterapeuta.
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