E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Prazer em me conhecer


São 12h de uma terça-feira qualquer em Barcelona. Estamos no Outono, mas ontem o Inverno veio dar um oi nessa ressaca eleitoral brasileira. De acordo com o meu Android - porque não sou socialista de iphone - faz 7 graus lá fora, e pela primeira vez na vida sinto uma certa simpatia pelo frio. Quando chegamos aqui no final de junho já fazia calor, com um vento suave que vinha do mar para refrescar os entardeceres às 22h. Até que veio o fim de semana seguinte ao meu aniversário, dia 5 de agosto, o dia mais quente da minha vida, que me deixou prostrada no sofá sem conseguir me mover. Estou gostando do frio porque hoje ele me permite ser quem preciso ser agora: a migrante introspectiva do interior de São Paulo convertida em imigrante sem papéis. Um problema no pé e a demora para finalização dos meus papéis de trabalho por aqui me impediram de seguir no ritmo que estava acostumada na última década. A menina desligada e desajeitada por ter crescido demais e muito rapidamente, deu lugar a uma workaholic conectada 24 horas por dia, seja no trabalho, seja nas redes sociais, seja aos milhares de amigos a sua volta. Foi excitante me transformar nessa mulher incisiva, às vezes até mesmo brava, foi ela que me levou para Nova Iorque e por dez dias andamos por aquelas ruas falando o inglês que aprendemos com as milhares de séries e filmes. E então ela casou, veio para Barcelona e não pôde trabalhar. Estava longe das amigas, da família, e foi aí que entrou a comida. São 12h de uma terça-feira qualquer friorenta, e comecei esse texto para contar que eu me peguei beijando o biquinho da jarra do liquidificador. A razão de tamanho afeto era o húmus - pasta de grão de bico, alho, azeite, sal e suco de limão - que acabava de bater, e que me fez perceber que talvez cozinhar tenha salvado minha vida, de novo.

Antes de seguir às evidências, gostaria de compartilhar uma situação minha com o Universo, ou a força maior que rege tudo, ou simplesmente, Elza Soares. Os movimentos que a vida faz têm uma sabedoria incrível, o que não quero que vocês entendam como uma afirmação #gratiluz, mas mais como uma concessão cansada mesmo de quem já tentou lutar muito contra. Aceitar é mais importante que lutar, e na verdade, manter-se sã no meio desse caminho é a grande chave do sucesso. Me incomoda hoje a sensação de viver dentro do mundo de Truman, sei que não sou tão importante assim pro universo, senão Jair Bolsonaro não teria sido eleito - nunca vou superar isso - mas sinto que precisamos rever o conceito de livre arbítrio, e aqui, meu ponto de vista é realmente laico - diferente do estado brasileiro, tá parei - apenas uma impressão do quanto somos minúsculos, de que existe sim o fator sorte, e isso inclui privilégio também, e no final das contas para sobreviver hoje é muito mais importante ser flexível que corajosa.

E então, como disse algumas vezes nesse very blog, não somos especiais, mas precisamos nos conhecer. E nesse sentido, a nossa educação em relação a sociedade falha tremendamente. Primeiro porque lutamos boa parte de nossas vidas para sermos aceitos - estou falando em nome dos velhos milleniuns, não sobre essa nova geração super afirmativa que nasceu no orkut. Quando lutamos para sermos aceitos, baseamos nossas escolhas em fatores externos que muitas vezes são nocivos a nossa personalidade. Vou dar um exemplo prático: na Unesp de Bauru havia três faculdades: Faculdade de Ciências, Engenharia, e finalmente a FAAC, de arquitetura, artes e comunicação, onde meu curso de relações públicas estava. No final do meu primeiro ano, já talvez brotando a publicitária em mim, resolvi entrar na Atlética do campus, que era majoritariamente formada por engenheiros, e por lá eu fiquei trabalhando na diretoria de comunicação por mais dois anos. Isso fez com que as minhas primeiras festas com Caetano Veloso, Mutantes, Nação Zumbi, Funk como le Gusta, Teatro Mágico e cia, desse lugar para os Inimigos da HP e o Chiclete com Banana. E não vou dizer que não “Valeu, o nosso amor valeu demais!”, morro de saudade das micaretas e das reuniões de domingo na Atlética, apesar do clima machista do início do séc XXI ser totalmente normalizado. Meus amigos engenheiros são meus amigos até hoje, estamos juntos a quase quinze anos, em Bauru, Maresias, Las Vegas, São Paulo, passando pelo rompimento de muitos namorados e namoradas, casamentos, filhos, tudo não necessariamente nessa ordem. Mas minha cabeça não consigo deixar de me perguntar como teria sido reconfortante ter participado mais das festas hipongas da FAAC, pessoas que agora reencontro com a mesma ideologia, na esquerda, no feminismo atuante, na discussão de gênero.

A faculdade foi um interlúdio louco, quatro anos de liberdade pura para testar quem eu era, até o último, quando a magia começou a dissipar para mostrar um futuro que não era certo porque não consegui me reconhecer e me empoderar nos três anos anteriores. Eu era infantil, e só passaria pela minha primeira prova real com o desemprego de seis meses ao voltar para a casa dos meus pais em Araras, e que só seria superado pelo desemprego que empreendi ao sair do meu primeiro trabalho na publicidade paulistana, e que ia muito bem há quase quatro anos, enquanto por dois anos pulei de freela em freela. Precisei voltar a pedir ajuda ao meu pai e fui obrigada a rever quem eu era, não sem uma grande tristeza muito parecida com depressão me empurrando para dentro do meu quarto. Em agosto de 2013 resolvi mudar para um apartamento sozinha, depois de ter morado com amigas nos últimos nove anos. Era uma urgência incontrolável para me encontrar, mas demorou para que eu mesma pudesse confiar nesse encontro. Corri com a arrumação do que carinhosamente chamava como meu studio, e depois de me sentir feliz com a direção de arte e todos meus livros expostos na sala, encontrei uma tristeza imensa que vem nos abraçar no ócio. Nas crises tentava considerar se não era talvez uma questão de lugar, se não estaria melhor em Araras, ou junto com as minhas amigas, para depois perceber que não havia um lugar que pudesse me separar de mim mesma, e então eu ficava ali na cama, as vezes em posição fetal, as vezes chorando, esperando que a sensação do nada passasse.

Um dia resolvi ir para cozinha e comecei a inventar coisas. Gostei da sensação de não pensar em nada além da combinação de sabores, em cortar coisas e depois limpar a louça. Costumava ir ao mercado e escolher o primeiro ingrediente que via pela frente para decidir o que faria depois. Minha especialidade era o macarrão sem molho, feito com base de alho, cebola e tomate, e o que tivesse na geladeira. Também comia tapioca com banana e canela todas as manhãs, até enjoar. Aquela cozinha que era só minha apesar de ter um fogão elétrico muito fraco - só depois de um ano descobri que ele deveria ser ligado no 220v - foi o meu lugar de fuga. E enquanto criava a comida, e sentia os cheiros, me reconectava com algo que já não lembrava mais, talvez minhas avós. E então passei a chamar as pessoas para me visitarem, cozinhar para elas, e rapidamente o studio se transformou em um lugar quentinho de encontro e comida.  Foi nesse momento que conheci meu marido, depois de muitas derrapadas românticas, e aqueles 38m2 da João Ramalho vão ficar sempre marcados como o lugar onde eu me conheci de verdade. 

Na cozinha havia uma insistência com os vegetais, os temperos, a berinjela reinava firme no meu coração juntamente com o tomate e o manjericão. Descobri novos preparos, curry, a cozinha asiática, Masterchef era meu programa preferido de todos os tempos - ainda é - cheguei a fazer uma campanha e filmar com o Jamie Oliver de quem eu copiava o jeito apaixonado de preparar as coisas com as mãos e de forma quase impetuosa. De lembrar da mágica ácida de um bom limão espremido com a picância de uma pimenta dedo de moça. Meu trabalho me levava a fotografar alimentos, e a estar com chefs renomados brasileiros, e hoje estou aqui, na Catalunya, que apesar do que os independentistas possam dizer, é a Espanha. Aqui o tempero é contido: alho, cebola, azeite e sal. Dificilmente usam ervas ou especiarias, de qualquer forma me coloquei a empreender dois clássicos daqui, as patatas bravas e croquetas, e foi o auge da minha diversão. Me tornei também mezzo vegetariana, priorizando vegetais a carnes, comendo só de vez em quando peixes e ovos. Tirar carne foi como tirar uma distração, percebi a riqueza de combinações possíveis com vegetais e leguminosas, e até mesmo me permito fazer algumas frituras vez por outra. Tem sido muito divertido, o meu corpo curtiu a ideia, meu intestino nem se fale, e os cheiros e sabores passaram a fazer uma festa ainda mais suntuosa no meu paladar.

Não sei o que vai ser de mim, do meu futuro. Tenho escrito bastante, para depois ler, para depois assistir filmes, escrever mais um pouco e cozinhar, mas sigo amando produzir filmes. Não reconheço mais a felicidade histérica da faculdade ou dos fins de semana, vivo pisando em ovos, seguindo pistas e ainda não me encontrei, talvez nunca me encontre. Posso estar enlouquecendo ou posso estar chegando lá. De qualquer forma, tem sido um prazer me conhecer.

Patatas bravas com molho caseiro criado por mim (não acertei na fritura, mas tava delícia)


Aufwiedersehen!!

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