E tem mais...

(...)

Um monte de coisa misturada..

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Leve demais


Antes de começar a escrever esse texto, como sempre, fiz questão de organizar esse layout que deve ser justificado - nada mais calmante que um texto justificado - com uma fonte diferente de Arial porque ninguém merece escrever em Arial um texto super sincero - escolhi a despretensiosa e limpa Helvetica - e por último defini o espaço entre linhas para 1,5. Isso tudo não sem antes fazer novamente um esforço imenso para acordar, chocar minha retina com a luz das minhas quatro redes sociais, 10% no decadente facebook, 15% no old but gold twitter, 20% Linkedin e os últimos 55% no queridinho porém ordinário, Instagram, para finalmente despertar e sair da cama às 10:30h, quase sempre por uma vontade incontrolável de mijar. Volto para a cama, abraço e sinto o cheiro amanteigado da nuca do meu marido, e só então me levanto de verdade para tomar minha água com limão espremido e preparar o café.
Hoje comecei a preparar o almoço na hora do nosso desayuno porque ele teria uma prova de trabalho às 13h. Estamos devendo para os meus pais e agora para o banco, mas nos consideramos na maioria do tempo vencedores, porque as coisas não sucederam nada como imaginávamos por aqui, na imigração. Já se passaram cinco meses sem que eu possa trabalhar, normalmente eu que tenho sido nossa principal fonte de renda, e meu marido já teve uns quatro trabalhos entre uma crise existencial profissional e outra. Eis que em duas semanas chega o agendamento para a minha entrega de documentos para enfim areglar los papeles, não serei eu em breve mais um membro desse grupo vasto de sin papeles na bela Barcelona.

E enquanto preparava o almoço para ele, minha comida preferida, macarrão sem molho com o que sobre na geladeira, literalmente o que sobra porque vamos mudar de apartamento amanhã, sentia uma pequena chama de ânimo aquecer meu peito que andava frio e seco desde ontem por motivos distintos que foram enfatizados por uma cólica feroz. Aliás, antes da cólica eu havia colocado de forma errada o meu coletor menstrual, e no metrô sentia o sangue vazando como uma lembrança sórdida da adolescência, até me lembrar que sou feminista hoje, e também adulta, e que o sangue celebra a nossa natureza divina feminina. Apelar pra natureza selvagem sempre ajuda e faz sentido.

Comecei a guardar minhas roupas na mala desde segunda, hoje é sexta. Não me lembro quando me tornei essa pessoa tão cheia de manias e de uma organização quase neurótica, mas talvez eu esteja de novo sendo muito dura comigo. Arrumar as coisas, ou deixar tudo preparado com antecedência me traz uma sensação de tranquilidade, como se encontrasse vestígios do futuro enquanto organizo as coisas que levo comigo. As louças sujas na pia, ou principalmente a cama mal arrumada da noite anterior, gritam, tenho certeza. Não é possível conversar com o futuro em uma casa mal arrumada. Estou lendo Carolina de Jesus do Quarto de Despejo, e penso que ela não tinha esse luxo de arrumar as coisas, ou nem mesmo o presente do silêncio, com as brigas frequentes na favela onde não existe o particular, tudo é público. Dizem que ajuda pensar nas pessoas que estão em piores condições que você quando se sente triste, mas sempre achei isso um pouco cruel. Eu fico ainda mais triste pelas Carolinas, e sinto um pouco de asco das minhas preocupações que precisam ser legítimas para que eu sobreviva.

A cabeça humana é louca. Estava falando com meu marido esses dias sobre como essa experiência nossa de desapegar tem sido estranha. Primeiro desapeguei do meu trabalho, depois de muitas roupas, móveis, livros, nosso apartamento, nossa cama. Depois minhas amigas, São Paulo, nossa família, até que restaram nós dois e algumas malas. Lembrei do Milan Kundera e meu livro preferido nunca fez tanto sentido, “A insustentável leveza do ser”. Tive uma experiência muito gráfica da leveza em um grupo de meditação que estivemos, recebi a diksha de três pessoas com quem me conectei rapidamente, e por alguns segundos não senti o meu corpo. Foi como uma sensação geral de formigação sem a sensação da formigação, e naquele momento percebi que estaria ok morrer. Eu não era aquele corpo. Esse pensamento tem me assustado, como se eu estivesse vendo com clareza e de longe, leve demais.

E com a quase organização final dos meus papéis vem a expectativa de voltar a trabalhar, e o pensamento sobre o que eu gostaria de fazer. Foram seis meses com formato de anos, e me parece bobo voltar a me dedicar integralmente a publicidade e ao atendimento ao cliente, mas se não for isso, o que?

Aufwiedersehen!!

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